sexta-feira, 27 de maio de 2016

A Eucaristia como refeição

O ato de Comunhão não se resume ao mero "consumir", mas ao exercitarmos a convivência.
As refeições não apenas nutrem a fé dos crentes, mas nos conecta com o destino da humanidade.
As refeições não apenas nutrem a fé dos crentes, mas nos conecta com o destino da humanidade.
Por Márcio Pimentel*
Ontem, a Igreja, no mundo inteiro, reuniu-se para celebrar a Solenidade do Corpo e Sangue do Senhor – Corpus Christi. Muito embora se pareça com uma “duplicação” da Quinta-feira Santa, é evidente – tanto histórica quanto eucologicamente – que o eixo desta festa litúrgica é de caráter devocional. A Solenidade ontem, 26 de junho, centra sua atenção na perspectiva da presença real e verdadeira do Senhor nas espécies eucarísticas. A sequência, facultativa na missa, desenvolve toda uma argumentação a respeito. A oração do Dia reza: dá-nos venerar com grande amor o mistério do vosso corpo e do vosso sangue”. Embora esta expressão, que reinterpretada pode revelar ricamente uma teologia eucarística mais concorde com a tradição litúrgico-sacramental pós-conciliar, dá a entender que o foco da celebração de Corpus Chrisit seja a “transubstanciação” do pão e do vinho. É bem verdade que o Lecionário para esta missa nos oferece propostas para uma hermenêutica mais ampla e não apenas centrada na perspectiva das “espécies transubstanciadas”. A primeira leitura centra atenção na oferta de Melquisedec (pão e vinho), mas a segunda opta por narrar a instituição da Ceia Eucarística como memorial. O evangelho aponta a dimensão de “manducação” que deverá ser aplicada à compreensão do mistério eucarístico, mas o Salmo respira a perspectiva sacerdotal e, portanto, oblativa com a qual a vida de Jesus é interpretada.
A oração depois da comunhão fala em saborear a divindade na terra, mediante a participação nos dons sacramentais (pão e vinho consagrados). Nossa atenção volta-se para a motivação fundamental com a qual os fiéis deveriam celebrar a Eucaristia: tomar parte na vida divina através da repetição ritual da última Ceia de Jesus, tornada por Ele um memorial. Saímos, então, do âmbito apenas “nutricional” da celebração para o aspecto convivial do sacramento. A Eucaristia é Sacramento da Comunhão não apenas no que se refere diretamente ao pão e vinho consagrados, mas porque a Eucarística é Banquete nupcial. Isso é reiterado cada vez na missa: “Felizes os convidados ao Banquete Nupcial do Cordeiro”. Este ponto é importante. Embora a Missa (toda ela) deva culminar no ato ritual de alimentar-se, este gesto é vivido na intensidade de uma relação de aliança, de pacto, não apenas entre Deus e o Povo, mas dos irmãos e irmãs entre si.  Somos alimentados pelo Senhor como assembleia, que é a realização visível, em um determinado lugar e tempo, deste mesmo Povo de Deus. Comemos e bebemos num contexto de refeição, de convivialidade. Este elemento se mantém desde a última Ceia de Jesus e é o coração de seu mandato: “Fazei isto em memória de mim”, isto é, realizai esta Ceia.
O ato de Comunhão, portanto, não se resume ao mero “consumir”, mas ao exercitarmos sacramentalmente a convivência em torno da Mesa que se verte em Altar: comemos e bebemos juntos. Por experiência, todos sabemos que uma refeição não se restringe ao ato de comer. Sentar-se à mesa significa bem mais que isto. Assim também o era no contexto das narrativas evangélicas nas quais Jesus é apresentado compartilhando o alimento, comendo com publicanos e pecadores, entrando em comunhão de vida com ele.  Na última Ceia, o que está em jogo é um ato de comunhão, portanto. Os convidados são conduzidos a assumir neles – em suas relações, vale dizer – a entrega que Jesus faz de si mesmo, como ápice da vida oblativa que o conduziu até a cruz. Isso aparece com clareza, segundo Enrico Mazza, na bênção e distribuição do único cálice.1
Aqui nós temos a novidade ritual instituída por Jesus: o significado sacrifical de sua existência posto à disposição dos discípulos em um rito não-sacrifical, uma refeição. Raniero Catalamessa, ao comentar o hino eucarístico Adoro te devote, afirma que a consagração concentra o aspecto sacrifical, mas não de maneira excludente, e o rito da comunhão o aspecto convivial.2 Neste sentido, o altar dos cristãos sempre se diferenciou dos altares pagãos e isto pelo simples uso da toalha, que o converte em mesa para a refeição. Sabe-se que nas religiões em que a perspectiva sacrifical é assumida, em geral não se faz banquete no altar, que é lugar para a combustão da vítima. De todas as maneiras, é importante ressaltar que a Eucaristia nasce no cenáculo (= refeitório) onde não há um altar mas uma mesa para as refeições.3 Com isto, qualquer explicação ou mesmo culto que se dê em torno da Eucaristia não pode descuidar deste aspecto fundacional. Isso vale, também para a comemoração de Corpus Christi.
Por fim, resta-nos recordar que este banquete sagrado ou Sacrum Convivium, na poética de Santo Tomás, se dá na presença do Senhor. É refeição realizada estando, todos nós, à Mesa do Senhor, para usar a terminologia paulina. A convivência que nela se realiza e da qual tomamos parte é portal para a comunhão trinitária. Assimilando a vida do Filho que se derrama na intimidade familiar da Ceia, graças a atuação do seu Espírito em nós, somos enlaçados pelo amor do Pai que preside a história e orienta nossa existência no mundo. Esta Mesa, portanto, não apenas nutre a fé dos crentes, mas nos conecta com o destino da humanidade, nos compromete com o rumo salvífico da história e antecipa na terra, profeticamente, o que esperamos na plenitude do céu.
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1Cf. MAZZA, Enrico. La Celebrazione eucarística. Genesi del rito e sviluppo dell’interpretazione. Bologna: EDB, 2003, p. 281-282.
2Cf. CATALAMESSA, Raniero. Isto é o meu Corpo. A Eucaristia à luz do Adoro te devote e do Ave Verum. São Paulo: Paulus, 2005, p. 83-84.
3Cf. MAZZA, Enrico. Rendere Grazie. Miscellanea eucarística pel il 70º compleanno. Bologna: EDB, 2010, P. 274.
*Márcio Pimentel é presbítero da Arquidiocese de Belo Horizonte, especialista em música ritual pela FACCAMP, em Liturgia pela PUC-SP, licenciando em Educação Musical pela UEMG. Atualmente exerce a função de assessor eclesiástico para a Liturgia na Arquidiocese de Belo Horizonte e preside pastoralmente uma comunidade paroquial.

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