O Padre Antonio Spadaro com João, criança portuguesa que se correspondeu com o Papa Francisco |
GUSTAVO BOM/ GLOBAL IMAGENS
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Antonio Spadaro foi a primeira pessoa a entrevistar o Papa em 2013. É o organizador do livro "Querido Papa Francisco".
Antonio Spadaro é desenvolto, tem um sorriso quase permanente e fala num italiano arrastado, de quem está habituado a falar para quem nasceu longe da sua Sicília natal. Encontramo-nos um dia depois da apresentação do livro Querido Papa Francisco em Lisboa. Foi ele quem levou aquelas cartas de crianças ao Papa, e foi ele quem ouviu e transcreveu as suas respostas. Aqueles que o seguem nas redes sociais reconhecem nele companhia diária, como no Papa, sob o seu olhar atento. Spadaro haveria de falar com uma compreensão - e comoção - aguda de tudo isto.
Faz o percurso normal de um padre jesuíta, passando pela Filosofia e pela Teologia. Como vai ter à comunicação social?
O meu itinerário de estudos é muito estranho e complexo. Licenciei--me em Filosofia antes de entrar na Companhia de Jesus. Depois faço uma tese de doutoramento em Teologia com um tema de literatura e uma tese de Comunicação sobre um tema teológico. A Teologia deve sempre unir-se à reflexão sobre o humano e a comunicação é muito importante para compreendê-lo.
Tanto como o seu estudo sobre a escritora Flannery O"Connor, sobre quem também teve um blogue?
Sim, esse também foi muito importante. O seu olhar sobre a realidade tocou-me muito. Flannery O"Connor sabe reconhecer a graça e o divino no lugar que achamos ser o do diabo. Esta contradição agrada-me, reforça a fé, porque faz compreender como Deus se mostra em cada lugar e se manifesta em formas que não são aquelas a que estamos habituados.
Essa manifestação múltipla pode ter uma relação com a multiplicidade de informação de hoje?
Não é uma relação direta, mas permite uma relação de inspiração. As redes sociais hoje permitem partilhar múltiplos aspetos da vida, sobretudo com a fotografia. Fazem--se fotos não para memorizar, mas para partilhar. É preciso ser capaz de um olhar sintético, que permita compreender o sentido das coisas. Hoje o risco não é o de não haver informação, é de a dispersar e não entender o seu sentido.
Esse sentido constrói-se?
Não. O sentido não se constrói, encontra-se.
O que lhe parece importante encontrar por entre a confusão das redes sociais?
As redes sociais só se percebem como confusão se não existir uma unidade interior. A confusão não é exterior, é interior.
Quando lhe aparece a ideia de Ciberteologia, conceito que dá título a um livro e a um site seu?
A conferência episcopal italiana pediu-me uma palestra sobre religiosidade e redes. Estou a prepará-la e não consigo escrever. Comecei a pensar e perguntei-me: "Qual é o impacto da rede sobre mim?" Disse: "Está a mudar a minha maneira de pensar". E pensei: "O que é a teologia? É pensar a fé. Se as redes mudam o meu modo de pensar, e a teologia é pensar a fé, as redes têm impacto no meu modo de pensar a fé."
Que alteração provocam?
É difícil fazer uma síntese, é muito complexo, mas posso dar um exemplo. A fé esteve sempre relacionada com a nossa procura. Um dos aspetos mais importantes da rede é a procura no Google, num motor de pesquisa. Não se escreve "Quem é Antonio Spadaro?" Escreve-se "Antonio Spadaro". A pergunta desaparece. Nós pomos as palavras e o Google dá-nos a resposta. Se eu puser a palavra "Deus", tenho milhares de respostas. Temos respostas sem fazer perguntas. Num mundo em que tudo são respostas, estamos a perder a pergunta. Qual é o papel da Igreja? Eu proponho uma resposta: o Evangelho até aqui foi apresentado como o livro que contém todas as respostas às perguntas do Homem; hoje devemos começar a apresentá-lo como livro que contém todas as perguntas sobre a vida do Homem.
O Papa já reflete a nova era?
Uma coisa que me toca profundamente é ver como o Papa Francisco, que não tem nenhuma experiência na rede, sabe perfeitamente como falar a pessoas que pensam segundo a lógica da rede. Isto é extraordinário. Nas primeiras 12 horas de Instagram [tal como Bento XVI, também ele está no Twitter] teve um milhão de seguidores. Um recorde absoluto.
Muitas vezes a comunicação social apresenta o Papa como revolucionário em muitas coisas de que depois os católicos vêm dizer: outros papas disseram isso, isso é a doutrina da Igreja. O que há de radicalmente diferente em Francisco? É a forma de comunicar a doutrina, é o seu caráter?
A característica principal do Papa Francisco é a sua compreensão radicalmente pastoral da doutrina. O Papa não quer ser uma pessoa revolucionária, ele define-se como filho da Igreja. O Evangelho é que é revolucionário, não é o Papa. [Com ele] as pessoas percebem com mais facilidade a potência revolucionária do Evangelho.
Também visível além do seu lado mais público?
Para ele não existe uma diferença radical. Eu invejo-o muito, não por ser Papa, mas porque é uma pessoa livre. É muito difícil ser livre. Ele é sempre o mesmo, esteja à frente do Presidente de Portugal ou de mim.
Já tinha ouvido perguntas como as que as crianças fizeram ao Papa nas cartas que formam o livro Querido Papa Francisco?
Não tão corajosas. Algumas sim, eram as minhas enquanto criança.
Por exemplo?
O que fazia Deus antes de criar o mundo? Há perguntas muito difíceis. Há uma que fiz à minha mãe: os pensamentos que temos são nossos ou é Deus que os põe na nossa cabeça?
Houve alguma resposta do Papa que o tenha surpreendido?
Todas elas. Uma que me impressionou muito foi sobre o milagre [se pudesse fazer um, qual seria, e Francisco responde que curaria as crianças]. Lembro-me desta resposta. É muito corajoso um Papa que diz: "Ainda não consegui entender porque sofrem as crianças, para mim é um mistério." Isto não significa que não confie em Deus, ou que lhe falte fé. Nesta página o Papa é muito corajoso. Como na das asas [quando uma criança pergunta se crescerão asas à mãe, que morreu]. O Papa destrói o imaginário da criança. É dulcíssimo, diz: "A tua mãe está no céu muito bonita, cheia de luz, mas não lhe crescerão asas." Consola a criança mas não confirma a sua imaginação.
Olhando para a recente Exortação Apostólica Amoris laetitia (A Alegria do Amor), o que existe de novo? Fala-se de uma abertura. Qual é?
Em primeiro lugar, a atitude radical do documento, extremamente pastoral e coerente com a vida das pessoas reais. Não é abstrata, não é um documento sobre a doutrina, é sobre amor e família. A linguagem, por exemplo, é absolutamente coerente com a vida real. Esta é a primeira diferença. A segunda é o papel da consciência e do discer-nimento, do foro interior. Por exemplo, sobre a questão da comunhão dos divorciados recasados. De agora em diante a questão "é-lhes permitido receber a comunhão?" já não faz sentido. "É lhes permitido" já não faz sentido. A solução não está numa regra abstrata que tem de ser aplicada em todos os casos.
Reforçando assim a responsabilidade de cada leigo e sacerdote?
Sim. A expressão importante é "discernimento pastoral". Por exemplo, um pecado objetivo pode não ser pecado para outra pessoa. Pode viver numa situação de pecado, mas pode ser não completamente responsável por ela. A compreensão do sacramento [da comunhão] é de ajuda, ajuda pela graça.
Não é um prémio.
Exatamente. Este é um critério para compreender todas as situações, é para todas.
Como sacerdote, esta exortação apostólica ajudou-o?
A vida efetiva da Igreja e as relações pastorais reais, dos sacerdotes com os fiéis, torna-se clara num documento daqueles. Os sacerdotes usam muito do seu foro interior para resolver as situações, mas até agora este lado pastoral da Igreja não tinha surgido num importante documento da Igreja. Agora tornou-se no centro. Não é a doutrina ela mesma, mas como vivê-la. Como padre, com este documento não recebo uma lista de normas, mas um impulso para ser responsável no meu trabalho pastoral.
O Papa Francisco já está a mudar o mundo?
Um grande amigo muçulmano do Papa disse que, a 13 de março de 2013, não foi eleito apenas o Papa da Igreja Católica, mas um grande líder moral do mundo. O Papa tem um grande impacto sobre a vida do mundo em geral. Uma recente sondagem da Gallup evidenciou que o Papa é um dos líderes mais ouvidos do mundo [Francisco surge à frente do Presidente americano Barack Obama ou da chanceler alemã Angela Merkel].
O que aprendeu com ele?
Toca-me muito a sua espiritualidade, a capacidade de compreender o humano. Para mim é um grande desafio. Mais do que aprender algo específico, sinto-me muito desafiado na sua presença.
Não só por andar sempre a correr atrás dele mundo fora...
Não. Move-me sempre. Faz que não esteja fechado, quieto. Por exemplo, a palavra "misericórdia", que é muito simples: o conteúdo dela cada vez me surpreende mais.
Na sessão de apresentação de Querido Papa Francisco contou que, quando ainda não o conhecia, o Papa lhe ligou para agradecer um livro que escrevera. Conheceu-o muito tempo depois do telefonema?
Ele telefonou-me em março e a entrevista foi em agosto.
Foi a primeira entrevista de Jorge Bergoglio. Como aconteceu?
Pedi ao Papa esta entrevista em junho. E o Papa respondeu-me: "Não, absolutamente não, não sei como responder, não gosto de entrevistas, nunca as dei." Mas percebi que, depois de dar a resposta, ele começou a pensar, e disse-me: "Envie-me perguntas e eu vou tentar escrever respostas." E eu disse: "Ótimo." Dei-lhe vinte perguntas no Dia da Juventude, no Brasil. Quando voltou, disse-me: "Li as suas perguntas, prefiro falar."
A vaticanista Aura Miguel disse invejar-lhe a "carta branca" que tem para acompanhar o Papa...
Não, não. O Papa tem uma multiplicidade de repórteres, fala com muita gente, telefona a muita gente. Ele sente-se absolutamente livre para pedir sugestões a muitos, e é por isto que ele vive em Santa Marta. Não é pela pobreza, é para ser livre para encontrar pessoas sem grande cerimónia.
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