Por Carlos Ávila
Júlio Castañon Guimarães: poeta-tradutor e ensaísta.
Júlio, a dissolução de referentes e a abstração semântica parecem marcar sua poética. Há uma opção proposital por uma linguagem elíptica, “onde a sintaxe se rarefaz/e subsiste não mais que por hipóteses de fios”?
Não sei se se trata de uma “opção proposital”. De qualquer modo, acho que não vejo, pelo menos não fica clara para mim, essa dissolução de referentes. Para pegar um aspecto bem evidente, lembro que muitos dos meus textos têm como títulos nomes de lugares. É verdade que não me interessa muito tratá-los de modo descritivo, dificilmente isso ainda faria algum sentido. Talvez até transpareçam algumas relações de ordem subjetiva, mas o lugar será sempre um espaço físico concreto. Sobretudo parece que acabo procurando perceber uma espécie de funcionamento desses lugares, na condição de paisagem, e examinar a articulação de seus elementos, o que pode implicar uma boa dose de abstração, mas não um abandono do espaço concreto. Pode-se dizer que a abordagem desse funcionamento, algo como uma sintaxe, se faz, e até mesmo a pede, como uma exploração da sintaxe do próprio texto, que é uma preocupação bem palpável para mim – só não posso saber se o resultado de fato “funciona”.
Que “raízes” ou influências (inclusive extra-literárias) apontaria na formação dessa poética? É conhecida sua ligação e seu interesse pela música erudita (inclusive contemporânea) e pelas artes visuais.
Em primeiro lugar eu citaria a leitura dos poetas do modernismo, o que não é nenhuma novidade – entre eles há alguns poetas enormes, que quase todo mundo que veio depois inevitavelmente os cita como sua grande influência. Lembro mesmo que em Portugal, para os poetas dos anos 50, 60, foram importantíssimos autores como Bandeira e Drummond. A estes, no meu caso, acrescento João Cabral, os concretistas. Acho que o fato de ter traduzido alguns poetas (Mallarmé, Valéry, Francis Ponge) também me fez ver elementos que provavelmente me marcaram. Mas essas “influências” não vêm só diretamente da própria poesia, vêm muito da crítica – assim, a crítica que me ajuda a ler este ou aquele poeta evidentemente participa do que eu possa vir a aprender com esses poetas. Outras áreas possivelmente contribuem para a prática da poesia, de modo especial o interesse pelas artes plásticas e pela música, mas nesses casos me parece que as relações são mais difusas, o que não quer dizer que não possam ser perceptíveis.
Você é um estudioso/especialista na obra de Murilo Mendes; identifica-se mais com este do que com Drummond?
São dois poetas bem diferentes, que ocupam espaços um pouco distintos. É de qualquer modo difícil contrapô-los. De modo mais evidente, Murilo tem uma circulação bem menor, uma repercussão bem mais reduzida. Isso talvez se deva, em parte pelo menos, ao fato de sua obra sempre ter tido problemas de edição, ainda que se possa, ao contrário, considerar esses problemas de edição como decorrentes exatamente dessa repercussão mais reduzida. Há muitos trabalhos universitários sobre a obra de Murilo Mendes, ele é um dos grandes nomes de nossa poesia, mas com frequência sua obra não está disponível nas livrarias. Recentemente a Cosac Naify começou a publicá-la, com um projeto de edição integral, o que foi interrompido com o fim da editora. É um poeta às vezes muito desigual – toda a parte de sua poesia em que ele foi mais levado pelo peso da religião me parece até ruim; em compensação, foi capaz de renovações admiráveis, com uma poética ampliada por suas relações com as artes plásticas, com a música e com a produção poética mais nova.
Você tem traduzido poetas atuais de língua francesa (Jean-Pierre Lemaire, Antoine Emaz, o belga Serge Núñez Tolin etc.). Fale sobre seu intercâmbio e contato com os poetas vivos da Europa.
Li apenas alguns poucos poetas contemporâneos franceses, ou seja, esse meu contato é bem limitado. A produção é muito extensa, não tenho pretensão nem possibilidade de nenhum conhecimento abrangente. Um pouco ao acaso, um pouco por uma referência numa leitura ou sugestão de alguém, acabei chegando a alguns trabalhos, como os dos poetas que você refere. São poetas muito diferentes, que me interessaram cada um por certas características de seu trabalho, e acabou havendo a possibilidade de traduzi-los e organizar um livrinho de cada um. O Antoine Emaz, de modo especial, me interessa muito, pela investigação sobre as possibilidades da poesia e a exploração de uma linguagem quase que como em dissolução; ele é mesmo considerado hoje um poeta de fato importante, e o livro dele que organizei e traduzi (Lama, pele, que saiu pela 7Letras, em 2012), reunindo uma seleção de poemas de dois de seus livros (Boue e Peau), parece-me que dá uma boa mostra da sua produção.
Como vê a situação da poesia hoje? Você diz que “os nossos livros são livros-fantasmas”…
Já se foi o tempo em que Drummond publicava um longo poema ocupando duas páginas de um jornal como O Estado de S. Paulo, ou em que os suplementos literários publicavam artigos que se estendiam por dois ou três números do jornal. Os responsáveis pela imprensa acham que não há público para isso. E sob a rubrica “cultura” um jornal dá notícia de um reality show. Os governos têm um descarado desprezo pela cultura. Não há boas edições completas disponíveis da maioria dos grandes autores da literatura brasileira. Nenhuma editora tem uma coleção de poesia significativa, com número considerável de títulos, incluindo clássicos das várias línguas. É nesse cenário que se situa a poesia aqui, hoje. Mas acho que continuamos a ter uma produção onde surgem novos nomes que merecem atenção. O problema é que frequentemente muitos livros, inclusive alguns muito bons, passam despercebidos pelo pequeno número de espaços mais frequentes e abrangentes de apreciação. Por outro lado, há nas universidades muita gente estudando atentamente a produção contemporânea, o que sem dúvida é extremamente positivo.
O que tem feito no momento? Há algum novo livro seu (de poesia, tradução ou ensaio) “a caminho”?
Tenho escrito pouco, devagar; de qualquer modo há um livro de poemas em organização, talvez fique pronto para o ano que vem. Gostaria de publicar mais alguma coisa do Antoine Emaz, mas ainda não vi possibilidade para isso. E cuido de terminar uma edição da correspondência Haroldo de Campos/Affonso Ávila, trabalho que se arrasta há alguns anos, interrompido por viagens, falta de material nas bibliotecas, etc. É uma correspondência importantíssima, algumas cartas são verdadeiros ensaios; sua publicação contribuirá muito para o conhecimento dos dois autores e dos movimentos literários a que estiveram ligados.
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