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A eucaristia não fora instituída para adorarmos a hóstia, mas para nos unirmos a Cristo.
Cristo está em nós, quando nos aproximamos do necessitado para aliviar sua penúria.
O Prof. Dr. Francisco Taborda, jesuíta e professor da FAJE, concedeu-nos a seguinte entrevista, na qual aborda a questão eucarística e sua importância para a vida da Igreja, refletindo, a partir da devoção eucarística, sobretudo por ocasião do XVII Congresso Eucarístico Nacional.
1. Qual a importância pastoral de festas como o Congresso Eucarístico Nacional, que acontecerá na próxima semana, em Belém do Pará?
Já o grande teólogo uruguaio Juan Luís Segundo, nos anos 60-70 do séc. XX, refletia sobre a dialética de massas e minorias na pastoral. O é, propriamente, um movimento de minorias. Não sem razão Karl Rahner, retomando uma expressão bíblica (cf. Lc 12,32), falava do “pequeno rebanho” e convidava os os a se conformarem em que passara o tempo de um l, patrimônio comum a toda uma nação ou a toda uma cidade. Em vez disso afirmava – com razão – que “o o do futuro ou será um místico ou não será o”, isto é, ou será alguém que tem uma experiência profunda de em ou não será o. Rahner profetizava, pois, que o se tornaria cada vez mais uma religião de minorias.
Juan Luís Segundo reconhecia, por sua vez, que os movimentos de massa, as grandes aglomerações em nome da fé têm seu sentido, porque é das massas que sairão as minorias que procurarão viver mais radicalmente o seguimento de . Os Congressos Eucarísticos podem ser arrolados entre essas manifestações de massa e podem ser momentos importantes para maior conscientização das maiorias ou para o surgimento de novas minorias.
2. O culto eucarístico fora da missa já faz parte da religiosidade popular, como algo bastante enraizado. Como, pastoralmente, ajudar os fiéis a viverem uma profunda espiritualidade, sem cair no pietismo?
Melhor do que falar em “pietismo” seria dizer “devocionismo”. “Pietismo” designa em teologia o movimento de renovação religiosa que surgiu na Igreja luterana alemã no séc. XVII e expandiu-se grandemente no séc. XVIII. Ao racionalismo teológico contrapunha a valorização da piedade interior. “Devocionismo”, porém, significa um exagero nas devoções particulares aos santos ou a aspectos parciais do patrimônio da fé . No caso da , o devocionismo seria – e é – uma exagerada devoção ao Santíssimo Sacramento isolada da eucarística que é o chão primeiro (o “Sitz-im-Leben”) da . Esse devocionismo que se expande muito atualmente – inclusive s às televisões ditas “católicas” – tem suas expressões mais recorrentes no “passeio com o Santíssimo” durante ou depois da missa, na transformação do Santíssimo Sacramento em uma espécie de amuleto que se procura tocar com as mãos ou com documentos como a carteira de trabalho, e em práticas semelhantes que a imaginação piedosa desenvolve com criatividade pouco esclarecida.
Seria fundamental que um Congresso Eucarístico levasse os fiéis ao cerne da que é ser o memorial da Páscoa do , através do qual participamos dos efeitos os do . Seria importantíssimo salientar que a eucarística não tem por finalidade tornar presente, pois está presente a sua Igreja não só no eucarístico, mas de inúmeras maneiras que a Constituição sobre a Liturgia, do , enumera no seu número 7 e VI depois aprofundou na Encíclica Mysterium fidei, de 3 de setembro de 1965. Em todos os s está presente, porque é ele quem os celebra, representado pelo ministro. Como disse Santo Agostinho: “Quer Pedro batize, quer Judas batize, é que batiza”. Se é que batiza, ele está obviamente presente e ativo no . E o mesmo vale dos outros s. está presente quando a Igreja ora e salmodia, pois onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome, ele está no meio deles (cf. Mt 18,20), já que a da Igreja é a do corpo de e onde está o corpo está também a cabeça. está presente quando é proclamada a Palavra de nas da Igreja e na pregação, pois através dos leitores é o próprio que fala a sua reunida. está presente no pobre que tem fome, sede, não tem onde morar, não tem roupa etc., como enumera no capítulo 25 do de , pois – diz ele – “o que fizerdes ao menor de meus irmãos a mim o fizestes” (Mt 25,40). Se o fazemos a ele, ele está no pobre. Mas ele também está em nós, quando nos aproximamos do necessitado para aliviar sua penúria. Todas essas formas de são reais, não é um “faz-de-conta”. A eucarística se distingue pelo fato de ser uma substancial, como explica VI.
Para que os Congressos Eucarísticos levem à genuína compreensão da , é preciso ter em mente essa multiplicidade de maneiras da de e localizar nesse conjunto a eucarística. Significa tomar de que “não há
Mais ainda: a genuína compreensão de eucaristia implica em saber que sua celebração não é hora de adorar o Santíssimo, mas de unir-nos a Cristo no Espírito Santo para assim entregar-nos ao Pai. O Pai é que está no centro da celebração eucarística; Cristo é o mediador, o único sacerdote, a que nos associamos pela ação do Espírito em nós. A elevação da hóstia e do cálice no momento que se costuma chamar de “consagração” foi introduzido no séc. XII para se contrapor aos que negavam a real de Cristo na eucaristia. É, portanto, um acréscimo desnecessário e que pode desviar-nos do essencial que é unir-nos a Cristo no sacrifício da cruz em obediência ao Pai.
Os Congressos Eucarísticos, na primeira fase de sua história, centraram-se no mistério da real e na preocupação por demonstrar publicamente a fé católica rejeitada da vida pública por influência da Revolução Francesa. O Congresso Eucarístico Internacional de Munique (Alemanha), em 1960, quando já sopravam na Europa os ventos do próximo Concílio, significou uma reviravolta na compreensão da finalidade dos Congressos.
Por influência dos próceres do Movimento Litúrgico, concebeu-se o congresso como Statio Orbis. Conectava-se assim o Congresso com o antigo costume da Igreja romana de congregar todos os os em alguma das igrejas da urbe, sob a presidência do Papa, de forma a significar a unidade com seu por parte da Igreja espalhada pela cidade. Era a Statio Urbis, o lugar de reunião da Igreja da cidade de Roma. Assim os Congressos Eucarísticos seriam Statio Orbis, isto é, o lugar de congregar-se a Igreja universal para a da . Em consequência, o Congresso foi concebido segundo o modelo do tríduo pascal. Na quinta-feira recordou-se a última ceia com da em diversas igrejas, seguidas de um ágape, uma refeição fraterna a que eram convidados especialmente os necessitados; houve também ordenações presbiterais em várias igrejas da cidade. A sexta-feira foi dedicada à paixão de na paixão da e, por isso, aproveitando a proximidade do campo de concentração de Dachau, marcou-se este dia com uma peregrinação a esse lugar, onde tantos os morreram ou sofreram por sua fidelidade a e se uniram assim à paixão do . Foi consagrada uma capela dedicada à agonia de que havia sido prisioneiro nesse campo de concentração. O sábado foi o dia da luz, com uma solene eucarística no rito bizantino. Domingo, o dia do , o dia da
Um Congresso assim concebido era, por si só, uma catequese sobre a eucaristia como celebração do mistério pascal e sobre a preeminência da celebração sobre a adoração eucarística e a compreensão estática da de Cristo na hóstia consagrada. Graças à colaboração de Josef Andreas Jungmann SJ, o grande liturgista de Innsbruck, de Karl Rahner SJ, teólogo que teria fundamental importância no Concílio, Josef Ratzinger, teólogo jovem e promissor, Romano Guardini, eminente pensador católico e prócer do Movimento Litúrgico, e outros muitos, o Congresso de Munique quis ser um prelúdio do já convocado Concílio Vaticano II. De fato, a Constituição da Liturgia haveria de focalizar em primeiro plano a eucaristia como celebração, a tal ponto que foi preciso depois recordar as diversas formas de devoção eucarística. Infelizmente, com o passar do tempo, caiu no esquecimento o foco na celebração e caiu-se num devocionismo eucarístico que lembra os exageros da Idade Média, quando se levava o Santíssimo a “passear” pelos campos para abençoar a colheita.
Os seguintes congressos depois do Concílio estavam marcados sob a égide do Vaticano II e da reforma litúrgica e, embora não com uma concepção tão clara e inovadora como em Munique, a celebração eucarística sobrepôs-se à adoração do Santíssimo, pois o Concílio despertara a consciência do povo cristão de que a eucaristia não fora instituída para que a hóstia consagrada fosse adorada, mas para nos unirmos a Cristo em sua oferta ao Pai, no Espírito Santo.
3. Os grupos de caráter neopentecostal católico têm absorvido de maneira muito forte a religiosidade pautada na devoção ao Santíssimo Sacramento. Quais os riscos desta tendência, para a espiritualidade cristã?
Focalizemos alguns desses riscos, embora já tenham sido evocados de passo na resposta anterior. Os riscos dessa tendência seriam focalizar erroneamente a no dogma da real, esquecendo as outras múltiplas formas de de que também são reais, embora não substanciais. Com isso se corre o perigo de esquecer facilmente aquele princípio de espiritualidade que ensina a “buscar a em todas as coisas”.
Outro risco é o fetichismo. Considerar a hóstia consagrada como uma “coisa sagrada” que tem poder e centrar a na contemplação das espécies consagradas, deixando de lado o preceito de “Tomai e comei”, “Tomai e bebei”. Ao instituir a não disse: “Tomai e olhai”, mas “Tomai e comei”. O alimento não é para ser olhado, mas para ser comido. A exposição do Santíssimo pode até ter sentido, mas da mesma maneira como tem sentido que os pães fiquem à mostra numa padaria ou numa confeitaria: para que ao vê-los despertem o apetite e se venha a querer alimentar-nos com esses pães.
Outro risco é de um falso respeito pelas espécies eucarísticas. Em geral esses mesmos grupos que exageram na devoção posicionam-se contra a na mão, como se nossas mãos fossem indignas de tocar na hóstia consagrada. Se as mãos são indignas, mais indigna ainda é a língua, contra a qual a vitupera em termos fortíssimos (cf. Tg 3,1-12). Assim sendo não deveríamos permitir que nossa língua tocasse a hóstia e deveríamos abster-nos de comungar!...
4. A ênfase na adoração ao Santíssimo Sacramento, se desvirtuada, tira da Eucaristia seu lugar na Igreja, de banquete festivo, no qual a comunidade faz comunhão e se configura a Jesus. Quais alternativas mistagógicas são possíveis, para que as comunidades não percam o caráter celebrativo da Eucaristia?
Em parte já poderia considerar-se contemplada esta pergunta com as respostas precedentes. Acrescento agora que a mistagogia eucarística consistiria, por um lado, em mostrar o iro sentido da : unir-nos a na entrega confiante e total nas mãos de , fazendo memória de sua Páscoa, ou seja, de sua passagem do mundo ao Pai. Isso só pode acontecer pela ação do que suplicamos nos transforme pela em corpo (eclesial) de .
Além disso, acrescentaria que a mistagogia reside na própria da . Com razão, Bento XVI escreveu na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Sacramentum Caritatis, de 22 de fevereiro de 2007, que seria preciso trilhar “a estrada de uma catequese de caráter mistagógico que leve os fiéis a penetrarem cada vez mais nos mistérios que são celebrados. Em concreto, antes de mais nada, há que afirmar que, devido à relação entre a arte da celebração e a participação ativa, a melhor catequese sobre a eucaristia é a própria eucaristia bem celebrada” (Sacramentum caritatis, nº 64), tanto da parte de quem preside (o padre, o ) como da parte da celebrante. Os muitos acréscimos e penduricalhos que muitos padres adicionam à sob pretexto pastoral não ajudam a viver internamente a . Bento XVI, falando numa entrevista a padres da diocese de Albano (Itália), em 2006, lembrou que a primeira dimensão da arte de celebrar é ter presente que a “é oração e colóquio com Deus”. Vale a pena recordar suas palavras. Depois dessa afirmação, ele explicita: “Anunciando a Palavra, sente-se ele próprio [o padre, o que preside a ] em colóquio com Deus. E ouvinte da Palavra e anunciador da Palavra, no sentido de que se faz instrumento do Senhor e procura compreender esta Palavra de Deus que depois deve ser transmitida ao povo. Está num colóquio com Deus, porque os textos da Santa Missa não são textos teatrais ou algo semelhante, mas são orações, graças às quais, junto com a assembleia, falo com Deus. Entrar, portanto, neste colóquio é importante. São Bento em sua Regra diz aos monges, falando da recitação dos salmos: Mens concordet voci [A mente esteja de acordo com a voz]. A voz, as palavras precedem nossa mente. Em geral não é assim: primeiro se deve pensar e depois o pensamento se torna palavra. Mas aqui, a palavra vem antes. A sagrada liturgia nos dá as palavras; nós devemos entrar nestas palavras, encontrar a concórdia com essa realidade que nos precede”. Em outras palavras: nem os padres nem a são “donos” da para dispô-la a seu bel-prazer, mas servidores de uma que os excede, vai além de seus limites, é maior do que eles.
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