domingo, 21 de agosto de 2016

Transação penal e o processo administrativo

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A transação penal produz efeitos na aferição de infrações ambientais administrativas?
A reparação ambiental pressupõe somente o dano ou lesão ambiental e o nexo de causalidade.
A reparação ambiental pressupõe somente o dano ou lesão ambiental e o nexo de causalidade.

Por Marcelo Kokke*
Os problemas de comunicação e hermenêutica decorrentes de feitos jurídicos oriundos de ramos e institutos jurídicos diversos não são restritos, ao inverso, são amplos e polêmicos, pois advém da integração global das normas jurídicas em seu suporte último de anteparo de validade e conformação hermenêutica, a Constituição. O presente artigo visa lançar enfoque sobre dois eixos de desenvolvimento do direito punitivo e seus pontos de enlace, o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador Ambiental. Especificamente, pretende-se avaliar o seguinte ponto de questionamento: a transação penal em razão de crime ambiental produz efeitos na aferição de infrações ambientais administrativas?

Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador são ramificações específicas de um núcleo comum, o direito punitivo. O ponto de distinção está na autoridade que aplica a sanção e o tipo de sanção que pode ser alcançado. Somente o Direito Penal pode resultar em penalidades de privação de liberdade, sendo o Judiciário o órgão legítimo para sua aplicação. A especificidade e gravidade das consequências penais abriu espaço em termos de política criminal para adoção do instituto da transação penal, previsto no artigo 76 da Lei 9.099/951.

O primeiro ponto que é relevante abordar consiste em perquirir se há, e em que medida há, uma apreciação preliminar dos fatos apresentados na audiência preliminar em que será avaliada a possibilidade de transação. O artigo 76 da Lei 9.099 estabelece que a transação é possível quando os fatos são potencialmente capitulados como configuradores de crime de ação pública incondicionada. A transação penal pode ser proposta pelo Ministério Público quando for o caso de oferecimento de denúncia. Desta forma, não havendo o mínimo de materialidade ou de configuração de potencial autoria, ou mesmo tipicidade, não se faria admissível o oferecimento da denúncia, ao que por decorrência não se teria por possível a transação penal.

Oferecida a transação penal, e aceita, a sentença que a ratifica possui, segundo posição do Supremo Tribunal Federal, o caráter de sentença homologatória, sendo possível a execução das obrigações assumidas na própria transação2. O julgado pode ser visto como posição antagônica à parte da doutrina que visualizava na sentença caráter condenatório impróprio. Sendo a obrigação decorrente da transação penal restrita ao campo do teor assumido pela parte no próprio ato, implicações de culpabilidade e relativas a efeitos civis não são proporcionadas, o que é inclusive fruto do artigo 76, §6º, da Lei 9.099.

Entretanto, há um ponto de dissonância a provocar especificidade quando a questão vertida for relativa a crimes ambientais. Embora a regra geral tenha retirado a configuração de responsabilidade decorrente da lesão, esta regra geral abriu espaço a norma especial, constante no artigo 27 da Lei 9.605/98. O artigo 27 mais do que fixar efeitos civis na reparação da lesão ambiental ligada ao ato objeto da transação, estabeleceu o lastro de responsabilidade ambiental como um pressuposto para a própria transação penal:

Art. 27. Nos crimes ambientais de menor potencial ofensivo, a proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa, prevista no art. 76 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, somente poderá ser formulada desde que tenha havido a prévia composição do dano ambiental, de que trata o art. 74 da mesma lei, salvo em caso de comprovada impossibilidade.

A reparação ambiental é antevista como componente interna da transação penal. Isto significa que quando da transação penal, há responsabilidade pela reparação do dano ambiental. Sendo a reparação do dano ambiental fator que prescinde da culpa, em nada é afetada a ausência de sentença condenatória penal a aferir a culpabilidade da parte na transação. A reparação ambiental pressupõe somente o dano ou lesão ambiental e o nexo de causalidade, ou seja, o vínculo de autoria a interligar a ação ou omissão do agente ao evento lesivo ao meio ambiente.

Se a transação penal em crimes ambientais está lastreada à composição do dano ambiental, por consectário está lastreada a dois aspectos firmados quando de sua ocorrência: a autoria da lesão ambiental (sem autoria, sem ato omissivo ou comissivo não há responsabilidade pela reparação) e materialidade (dano ou lesão ambiental). Portanto, a transação penal em matéria de crimes ambientais provoca efeitos diretos na responsabilidade em relação à reparação do dano.

Tem-se assim dois fatores que impactam no direito punitivo ambiental. O primeiro é a caracterização de fatos que legitimariam a denúncia, ou seja, já há elementos configuradores de potencial persecução. O segundo está afeto à geração de efeitos diretos em autoria e materialidade, pois a transação penal pressupõe a assunção da responsabilidade pela reparação do dano ou lesão ambiental, somente podendo deixar de proceder à composição se faticamente impossível o for.

A questão que sucede diz respeito aos efeitos acarretados sobre o prolongamento outro do direito punitivo: o direito administrativo ambiental sancionador. O direito sancionador sob o aspecto ambiental pressupõe para a configuração da infração administrativa a ocorrência da materialidade do tipo infracional, configurada, por exemplo, na lesão ambiental, e na autoria, externada pelo vínculo de causalidade.

Se a transação penal em crimes ambientais, gera efeitos na configuração da responsabilidade por reparação civil, com fixação da autoria e da materialidade, a implicação proporciona reflexos diretos em comunicabilidade com a infração administrativa ambiental. A efetivação da transação penal, por força do artigo 27 da Lei 9.605, implica efeitos na responsabilidade civil e por consequência na configuração da responsabilidade administrativa ambiental.

A implicação projetada revela-se como sequencial do comando do Princípio 13 da Declaração do Rio, que determina a eficácia cumulativa de mecanismos judiciais e administrativos na reparação de danos ambientais3 assim como sequencial da própria determinação constitucional que vincula as responsabilidades penal, administrativa e cível4. A caracterização e efeitos de aplicação do artigo 27 da Lei n. 9.605 revela mais uma especificidade do Direito Ambiental, a qual se soma a outras, como a aplicação da Teoria do Risco Integral, a responsabilidade fundada no risco e a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.


1) Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

§ 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.

§ 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

§ 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.

§ 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.

§ 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.

§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

2) CONSTITUCIONAL E PENAL. TRANSAÇÃO PENAL. CUMPRIMENTO DA PENA RESTRITIVA DE DIREITO. POSTERIOR DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE CONFISCO DO BEM APREENDIDO COM BASE NO ART. 91, II, DO CÓDIGO PENAL. AFRONTA À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL CARACTERIZADA. 1. Tese: os efeitos jurídicos previstos no art. 91 do Código Penal são decorrentes de sentença penal condenatória. Tal não se verifica, portanto, quando há transação penal (art. 76 da Lei 9.099/95), cuja sentença tem natureza homologatória, sem qualquer juízo sobre a responsabilidade criminal do aceitante. As consequências da homologação da transação são aquelas estipuladas de modo consensual no termo de acordo. 2. Solução do caso: tendo havido transação penal e sendo extinta a punibilidade, ante o cumprimento das cláusulas nela estabelecidas, é ilegítimo o ato judicial que decreta o confisco do bem (motocicleta) que teria sido utilizado na prática delituosa. O confisco constituiria efeito penal muito mais gravoso ao aceitante do que os encargos que assumiu na transação penal celebrada (fornecimento de cinco cestas de alimentos). 3. Recurso extraordinário a que se dá provimento. (STF - RE 795567 / PR - PARANÁ - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI Julgamento: 28/05/2015 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-177  DIVULG 08-09-2015  PUBLIC 09-09-2015)

3) Princípio 13.

Os Estados irão desenvolver legislação nacional relativa à responsabilidade e à indenização das vítimas de poluição e de outros danos ambientais. Os Estados irão também cooperar, de maneira expedita e mais determinada, no desenvolvimento do direito internacional no que se refere à responsabilidade e à indenização por efeitos adversos dos danos ambientais causados, em áreas fora de sua jurisdição, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob seu controle. 

4) Art. 225. § 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

*Marcelo Kokke é mestre e doutor em Direito; especialista em processo constitucional; procurador Federal da Advocacia-Geral da União, professor de Direito da Escola Superior Dom Helder Câmara.

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