sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A profecia na Igreja latino-americana

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Vemos uma Igreja que não assume um lado, que deveria ser o da defesa dos mais fracos.
Dom Oscar Romero dedicou sua vida ao pastoreio libertador do povo de Deus, dessa América Latina.
Dom Oscar Romero dedicou sua vida ao pastoreio libertador do povo de Deus, dessa América Latina.

Por Felipe Magalhães Francisco*

O lugar que Jesus ocupou na sociedade de seu tempo levou muitas pessoas a o identificarem como sendo um Profeta. Ele, por sua vez, não reclamou para si este título. Sua vida inteira, no entanto, torna possível que assim o reconheçamos. Ele fez de sua vida uma profecia: por seus gestos e palavras, anunciou o Reino, de forma que escancarou tudo o que significava injustiça e opressão contra os pequenos.

A Tradição que deu continuidade ao Evento Cristo, leu, teologicamente, a vida de Jesus a partir de uma dinâmica pautada no triplo múnus: a de sacerdote, a de profeta e a de rei. A leitura da participação dos batizados e batizadas na vida de Jesus, por meio de uma dinâmica sacramental do Batismo-Crisma, é de que todos os fiéis partilham dessa mesma missão. No mundo, somos chamados, aos modos de Jesus, a sermos sacerdotes, profetas e reis.

O Concílio Vaticano II, como sinal de abertura de toda a Igreja para o diálogo com o mundo moderno, posicionou-se frente ao mundo, não mais como postura de total condenação, como havia feito no Concílio Vaticano I, mas aberta a reconhecer os avanços humanos nesse mundo que havia despontado. Essa abertura, no entanto, não significou que a Igreja tenha renegado sua missão profética. Ao contrário, atenta aos sinais dos tempos, a Igreja percebeu que precisava dialogar com as realidades do mundo, bem como ser sinal de anúncio e denúncia, em vista do Reino de Deus.

A Igreja latino-americana, na década de sessenta do século passado, viu verdadeiros e concretos sinais de receptividade das inspirações do Concílio Vaticano II. Sinal disso é a postura aberta que resultou no chamado Documento de Medellín, fruto da primeira Conferência do Episcopado Latino-Americano no pós-Concílio, em 1968. O contexto latino-americano era bastante conturbado na época. Em toda a América Latina as ditaduras, aliadas à histórica desigualdade social e aos demais problemas estruturais desses países, marcaram uma época de muita violência, como real situação de impedimento de concretização da justiça do Reino.

A Conferência de Puebla, ocorrida em 1979, ao firmar a opção preferencial pelos pobres, assumiu a necessidade de uma Igreja profética, em continuidade com as inspirações da Conferência de Medellín. O texto de Puebla, nos números 267 e 268, diz:

Na força da consagração messiânica do batismo, o Povo de Deus é enviado para servir ao crescimento do Reino nos demais povos. É enviado como povo profético que anuncia o Evangelho ou faz discernimento das vozes do Senhor no coração da história. Anuncia onde se manifesta a presença de seu Espírito. Denuncia onde opera o mistério da iniquidade, mediante fatos e estruturas que impedem uma participação mais fraterna na construção da sociedade e no desfrutar dos bens que Deus criou para todos. Nos últimos dez anos comprovamos a intensificação da função profética. Assumir tal função tem sido trabalho duro para os pastores. Temos procurado ser a voz dos que não têm voz e testemunhar a predileção do Senhor com os pobres e os que sofrem. Cremos que nossos povos sentiram que estamos mais perto deles. Com certeza conseguimos iluminar e ajudar. Com certeza, também, poderíamos ter feito mais. Agora, colegialmente, tentaremos interpretar a passagem do Senhor pela América Latina.

De fato, a Igreja latino-americana viu despontar grandes profetas, que ajudaram o povo a perceber as estruturas de injustiça em que estava enlaçado, e lutando para ajudá-lo a romper com elas. É o caso de Dom Helder Câmara e de Dom Oscar Romero, entre tantos outros que dedicaram suas vidas ao pastoreio libertador do povo de Deus, dessa América Latina. A vida desses profetas foi verdadeiro sinal da constatação feita na Conferência de Puebla, da intensificação da missão profética dos que lideram o povo no testemunho do Reino.

O caminho profético da Igreja latino-americana, no entanto, foi progressivamente enfraquecido, como consequência de uma tentativa restauracionista por parte da Santa Sé, sob a liderança de João Paulo II, que resultou na nomeação de bispos de caráter mais conservador e comprometidos com o interno da instituição, em detrimento do diálogo transformador. Isso podemos perceber também no Documento resultado da Conferência de Santo Domingo, em 1992, dando sinais de uma Igreja mais tímida, em relação com o rompimento com as situações de injustiça.

No Brasil, apesar de os grupos mais reacionários considerarem a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, como sendo uma entidade comunista, por uma suposta associação ao pensamento de esquerda, o que temos percebido é uma Igreja que padece de lideranças comprometidas com a profecia. Em seus pronunciamentos, o que encontramos é uma Igreja que não assume um lado, que deveria ser o da defesa dos mais fracos, tal como nos impele o Evangelho. A constatação feita em Puebla já não é atual, tirando algumas exceções, que ainda ousam continuar firmes no combate à injustiça, à luz do Evangelho, tal como o já fragilizado Dom Pedro Casaldáliga.

Mas o povo ainda resiste, com seus muitos profetas, com suas muitas vozes atuantes no chão de nossa história, ainda que a instituição não lhes legitime. No âmbito da Igreja universal, o Papa Francisco tem sido uma voz profética importante: não um profeta que anuncia o fim, mas a esperança, por meio do gesto e da alegria. Que seus pares não o deixem no isolamento, e façam coro, cantando o canto de esperança da profecia, para que as pedras não tenham que falar!

Leia também:

Os profetas e a profecia: caminhos de denúncia e de esperança

O profeta como porta-voz da esperança

A importância da profecia para o rompimento com as estruturas de injustiça

*Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Coordena, ainda, a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015)

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