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O amor de Deus deve chegar a todos desde baixo, a começar pelos últimos e esquecidos.
Helder Câmara é exemplo de vida coerente e profeticamente compromissada com o Reino de Deus.
Por Edward Neves M. B. Guimarães*
O profetismo concretiza-se como anúncio esperançado da chegada de um novo tempo, quando a vida será acolhida como o bem maior, o direito e a justiça irão reinar e a todos será garantido o acesso à vida plena.
O fenômeno do profetismo tornou-se muito conhecido ao longo da caminhada do povo de Israel, o povo da Bíblia. Os nomes de Isaias, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Amós, Oséias, Elias, João Batista, dentre outros, são muito conhecidos entre judeus e cristãos. Além do Judaísmo, o profetismo aparece como dimensão central na tradição cristã e muçulmana. Profeta ou profetisa são reconhecidos como aqueles que falam e agem em nome de Deus. Com suas vidas, são portadores de uma importante mensagem divina. Trata-se de homens e mulheres de fé comprovada e reconhecida, que desenvolveram profunda coragem, sensibilidade e consciência crítica da realidade, especialmente, por analisarem os acontecimentos da vida do povo à luz do projeto libertador de Javé, o Deus da Aliança. Para os profetas e profetisas, Deus revela-se, sobretudo, como o Goel do povo, o Deus redentor e garantidor da vida.
O profetismo tem duas dimensões complementares como faces da mesma moeda. Por um lado, ele concretiza-se como forte denúncia contra o status quo de injustiça, de desigualdade social, de opressão, de exploração, de exclusão, de violência... Situações compreendidas claramente como pecado social ou infidelidade, geralmente, dos poderosos em relação ao projeto salvífico de Deus. Eles “colocam o dedo nas causas das feridas sociais” ou “cutucam onças com vara curta”, por isso os profetas e profetisas são perseguidos e, quase sempre, têm o seu sangue derramado, mas, por sua fidelidade, sempre alimentam o horizonte da esperança de seu povo. Por outro, e sobretudo, concretiza-se como anúncio esperançado da chegada de um novo tempo, quando a vida será acolhida como o bem maior, o direito e a justiça irão reinar e a todos será garantido o acesso à vida plena. Essa nova realidade será denominada por eles como a concretização histórica do Reino de Deus.
A importância do profetismo no Cristianismo pode ser captada desde a sua origem, pelo fato de o próprio Jesus de Nazaré – fonte e fundamento de toda experiência cristã autêntica – ter construído a sua consciência social e religiosa a partir de uma profunda identificação com a experiência dos profetas de seu povo. Podemos dizer que a fé de Jesus foi marcada e consolidada pela experiência de Deus dos profetas. Ele mesmo ficou conhecido, por seus ensinamentos e posturas, como o profeta da Galileia.
Para Jesus, era fundamental denunciar os mecanismos ou desmascarar a lógica perversa do anti-reino presente nas injustiças e opressões, mas, sobretudo, anunciar e testemunhar a alegria da chegada do Reino de Deus. Este, para Jesus, era uma realidade já presente no meio da vida do povo, ainda que tal presença fosse experimentada como um fermento transformador a partir de sua prática de acolhida e misericórdia para com os pecadores e excluídos. Jesus tinha uma boa notícia para toda a humanidade, mas, sobretudo, para os mais pobres e excluídos da mesa da dignidade: empobrecidos pela dura exploração econômica, escravos, prostitutas, mulheres, crianças, estrangeiros, órfãos, viúvas, doentes, prisioneiros... Para todos os que se encontravam abandonados, às margens da sociedade, sem acesso à mesa da dignidade, e por isso, sentindo-se distantes e até abandonados por Deus, fragilizados em sua esperança para o futuro, o profeta da Galileia anunciava, com autoridade e coerência, o Evangelho do Reino (boa nova, boa notícia), uma palavra geradora de vida nova. Para eles, Jesus, o profeta do Reino de Deus, oportunizava singular experiência da proximidade amorosa, misericordiosa, salvífica e libertadora de Deus Pai, o Abbá querido. Por seu amor gratuito e universal, Deus nos irmana a todos e chama-nos para um compromisso com a prática da justiça, do direito, da misericórdia e do amor fraterno.
Essa prática profética de Jesus foi tão central em sua vida pública, que rapidamente ele passou a ser considerado pelos poderosos e privilegiados do sistema dominante um inimigo que devia ser rapidamente eliminado. Mas Jesus, homem totalmente livre, permanece fiel à sua prática profética do Reino até as últimas consequências. Consequentemente, ele vai ter o mesmo destino dos profetas: vai ser perseguido, criticado, traído, preso, julgado, condenado e, exemplarmente, executado como malfeitor na cruz. Mas Deus livra Jesus das garras da morte e o ressuscita para a vida plena. Seus discípulos e discípulas o experimentam vivo no meio deles e, pela força do Espírito Santo, vivo em cada um deles. Eles se deixam transformar por essa experiência de fé: vencem o medo da morte e passam, profeticamente, a anunciar e testemunhar, com toda esperança, a vida de Jesus como boa notícia de Deus para os pobres, como manifestação da justiça do Reino de Deus, como a encarnação do amor gratuito e universal de Deus para toda a humanidade, como caminho de redenção, conversão e salvação.
Nesse sentido, a experiência da fé cristã pode ser definida como a acolhida esperançada de uma boa notícia. Vivência que provoca intensa alegria, brotada do encontro, pessoal e comunitário, com Jesus Cristo e da experiência do amor gratuito de Deus. Mas, igualmente, a fé cristã é compromisso ético para com a mesma prática profética de Jesus: fazer com que o amor de Deus chegue a todos desde baixo, ou seja, a começar pelos últimos e esquecidos, os mais pobres e excluídos da mesa da dignidade.
Na caminhada do cristianismo na América Latina surgiram grandes profetas e profetizas que teimosa e destemidamente denunciaram as injustiças, opressões e violências, anunciaram e testemunharam, tantas vezes com o próprio sangue derramado, a presença libertadora do Reino de Deus. Comprometeram-se com o seguimento de Jesus na prática do amor ao próximo, na defesa radical da vida e na participação esperançada, com os movimentos sociais, na luta pela transformação ética desse continente tão desigual. Merece destaque, dentre outros, Adelaide, Chico Mendes, Cleuza, Dorothy Stang, Enrique Angelelli, Ezequiel Ramin, Gustavo Gutierrez, Helder Câmara, João Bosco Burnier, José Comblin, Jon Sobrino, Josimo Tavares, Leonardo Boff, Leônidas Proaño, Libanio, Luciano Mendes, Margarida Alves, Oscar Romero, Pedro Casaldáliga, Tito Alencar, Tomás Balduino... Homens e mulheres que, por sua vida coerente e profeticamente compromissada com o Reino de Deus, fecundaram o nosso chão com as sementes da esperança no Deus da vida. Por isso fazer memória dos profetas e mártires da caminhada alimenta a esperança do povo, sustenta içadas as bandeiras da justiça e da paz e mantém firmes os pés na caminhada.
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*O autor é doutorando em Ciências da Religião pela PUC Minas. É mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. É professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. Sua mais recente publicação: GUIMARÃES, Edward; JORDÃO, Tânia; SOARES, Paulo Sérgio. A vida dos santos. São Paulo: Loyola, 2016.
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