sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Francisco de Assis, a singular reciprocidade entre amor e pobreza

 domtotal.com
A existência de Francisco foi simbólico-sacramental.
A existência de Francisco foi simbólico-sacramental.

Por Sinivaldo Tavares*

Em sua encíclica sobre o cuidado da casa comum, a Laudato Si, o papa Francisco apresenta-nos Francisco de Assis como alguém que

Manifestou uma atenção particular pela criação de Deus e pelos mais pobres e aban­donados. Amava e era amado pela sua alegria, a sua dedicação generosa, o seu coração universal. Era um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo. Nele se nota até que ponto são insepa­ráveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior [...] A pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um as­cetismo exterior, mas algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio (nn. 10-11).

Comecemos por esta última afirmação do papa acerca da peculiar maneira de Francisco conceber a ascese e a penitência cristãs. Para o pobrezinho de Assis, “começar a fazer penitência” – expressão por ele mesmo usada no Testamento – é, antes de qualquer outra coisa, uma graça. É o próprio Deus quem o conduz a esta experiência. A iniciativa, portanto, é de Deus e não sua. Por esta razão, a decisão de “começar a fazer penitência” resulta visceralmente ligada à experiência de Francisco, chegando a atingir, portanto, seus principais sentidos. Em primeiro lugar, ele se torna mais atento e predisposto a escutar a voz de Deus entranhada nas fibras mais íntimas de seu quotidiano. A partir daí, ele passa a enxergar a realidade na qual se encontra inserido com outros olhos para poder, enfim, transfigurar todo o seu corpo na criação de relações novas para com as demais pessoas e criaturas, para consigo mesmo e para com Deus. Expressão desta sua radical transformação é o abraço de acolhida por ele oferecido ao leproso.

Percebe-se, assim, que o modo peculiar de Deus conduzi-lo à vida de penitência é provocá-lo a uma radical experiência de solidariedade. Solidariedade esta que se exprime sobremaneira na ternura e no cuidado para com os leprosos, mas que se revela ainda no peculiar enternecimento para com seus co-irmãos e para com todas as criaturas. Talvez aqui propriamente resida o diferencial da experiência de conversão vivida por Francisco. De fato, como ele mesmo revela em seu Testamento, o gesto que melhor exprime sua disposição em acolher a interpelação divina de “começar a fazer penitência” é o abraço do leproso. Extremamente significativo este gesto! Para Francisco, “fazer penitência” não se resume a um expediente sutil que o leve a se considerar à altura de qualquer mérito ou recompensa. Exprime, ao contrário, a vontade sincera de corresponder sempre mais à gratuidade do amor de Deus. E não existe maneira melhor para exprimir tal gratidão do que se esforçar para amar assim como Deus ama, vale dizer, de maneira gratuita, incondicional e desinteressada.

A solidariedade para com os pobres e marginalizados é expressão privilegiada desse amor gratuito e desinteressado. Esta experiência, que se encontra na raiz da conversão de Francisco, permite-lhe uma peculiar concepção de penitência. Para Francisco, em definitiva, a penitência é expressão de amor. Por isso mesmo, ele não se apresenta como um asceta triste, ranzinza, mal-humorado. As mortificações e as renúncias mais radicais purificam e potencializam o amor do Poverello a Deus e seu enternecimento e cuidado para com todas as criaturas. Enquanto exercitada e amadurecida em meio a uma experiência de radical solidariedade, a penitência propicia o desabrochar dos mais nobres valores e sentimentos entranhados no âmago do coração de Francisco. Talvez seja este o motivo pelo qual o santo de Assis tenha alcançado viver a pobreza na sua mais perfeita radicalidade.

Francisco jamais se sente suficientemente grato a Deus por tudo aquilo que dele recebe. Por isso se esforça para renunciar a tudo que o impeça de correr livre e de maneira desimpedida ao encontro do Cristo que, por amor, se fez pobre com os pobres. A pobreza, a renúncia, o fazer penitência tornam-se, assim, expressão da solidariedade de Francisco para com Cristo que, por primeiro, se solidarizou conosco por amor. Seus biógrafos mencionam, a tal propósito, uma das exclamações que, em meio a soluços, Francisco deixava escapar em seus frequentes momentos de meditação: “o amor não é amado”. Por esta razão, a maneira de Francisco amar é livre, despojada, penitente, pobre. Seguindo as pegadas de Cristo para poder permanecer em comunhão com Ele, Francisco quer amar de maneira gratuita: incondicional e desinteressada. E, para que seu amor seja autêntico como o de Cristo, ele se dispõe a renunciar a tudo quanto ameace, mediante qualquer tipo de opacidade, a transparência desse amor. Como o Cristo, ele simplesmente quer amar gratuitamente e mais nada. É a experiência da solidariedade extrema. Movido por este grande amor, a realidade toda se transfigura diante dos olhos maravilhados de Francisco. A criação toda é invadida por aquela singular transparência perceptível apenas àqueles que permitem ser visitados pela graça da contemplação. Quando acolhida com generosidade, como se deu com Francisco, esta visita torna possível uma experiência peculiar: a transfiguração de si mesmo, das demais pessoas e criaturas e, enfim, daquela complexa trama tecida com inúmeros fios que constituem nosso quotidiano. Foi esta a experiência feita por Francisco e que deixou, impressas nele, marcas indeléveis. Não por acaso ele é chamado “o irmão universal”.

E a partir do momento em que acolhe a interpelação divina de começar a fazer penitência, Francisco se deixa conduzir pelo Espírito do Senhor. No leproso, contempla Jesus Cristo e, portanto, acolhe-o mediante a oferta de seu terno abraço, revelando-lhe seu amor solidário. Começa a enxergar em tudo e por toda parte a discreta presença de Deus, não medindo esforços para acolher de forma inusitada suas mais sutis interpelações. Na acolhida dos irmãos que o procuram para comungar com ele de sua vida e destino, Francisco acolhe com generosidade a vontade de Deus, tornando-a seu mais radical projeto de vida. Toda e qualquer situação por ele vivida se transforma em ocasião propícia para reverenciar Deus e acolher suas mais inusitadas interpelações.

Ousaríamos dizer que Francisco de Assis alcançou viver uma existência, para todos os efeitos, simbólico-sacramental. O símbolo remete-nos ao fato de dimensões aparentemente separadas e contrapostas, mediante sadia tensão, confluírem para uma situação de comunhão na distinção. Assim, o pessoal, o interpessoal ou comunitário, o social e o cósmico, em sua relativa autonomia, confluem na fecunda tensão de uma organicidade complexa e plural. Na vida de Francisco, portanto, o enternecimento pelas criaturas se compõe com o empenho pela justiça e pelo cuidado para com os pobres. As invectivas em prol da sociedade justa e fraterna combinam muito bem com a paz interior. A preocupação e ocupação com os corpos dos pobres e das criaturas descuidadas se aliam à sensibilidade para com as necessidades da alma e do espírito. Em suma, o desejo profundo de Deus se casa com a solidariedade efetiva com os pobres e com o cuidado para com as criaturas do planeta.

O Cântico do Irmão Sol, conhecido também pelo nome de Cântico das Criaturas, poema que inspirou o papa Francisco na composição da Laudato Si’, sugerindo-lhe inclusive o nome da encíclica, revela a singular harmonia alcançada pelo poverello de Assis no exercício de suas distintas relações.  A tal propósito, gostaríamos de mencionar, aqui, a rigorosa análise que do Cântico do Irmão Sol faz o francês Éloi Leclerc, frade franciscano, falecido recentemente. A originalidade de sua análise consiste em interpretar o poema de Francisco recorrendo a três chaves de leitura: 1) a psicologia do profundo de C.G. Jung; 2) a poética de G. Bachelard; 3) a hermenêutica de P. Ricoeur. Servindo-se desta tríplice mediação, Leclerc mostra como os elementos cantados por são Francisco revelam um rico conteúdo arquetípico e manifestam assim a plena reconciliação entre mundo exterior e mundo interior, entre ecologia cósmica e ecologia mental/existencial. Numa palavra, a síntese entre a ecologia exterior e a arqueologia interior. Nesse sentido, este lindo poema constitui a mais plena expressão daquela “ecologia integral” proposta, de forma contundente, pelo papa Francisco.

Evitemos, portanto, a todo custo, a tentação de conceber Francisco de Assis como alguém que, por ser santo, teria tantos bons exemplos e lições a nos dar. Tentação esta muito presente mesmo entre aqueles – e são tantos – os que se dizem admiradores do pobrezinho de Assis. Nesse caso, por um lado, admiram-no por sua extrema pobreza, e, por outro, destacam nele sua romântica relação para com as criaturas da natureza. E, assim, desfiam uma após outra, a modo de um imenso rosário, uma ladainha de virtudes e de atitudes heróicas. Se os exemplos e as virtudes impressionam, por um verso, por outro, a desconexão entre eles inviabiliza toda e qualquer contemplação de uma vida integrada e harmoniosa que desperte nos outros o desejo de viver e agir como ele. Nada de tudo isso. A conexão íntima entre a solidariedade para com os pobres e o cuidado para com as criaturas da natureza é expressão do empenho testemunhado por Francisco em integrar suas múltiplas relações: para com o Criador, para com as outras pessoas, para com as criaturas todas e para consigo mesmo.

Por tudo isso, queremos fazer eco às palavras do papa que, após apresentar-nos a figura de São Francisco como motivação de fundo de seu discurso desenvolvido ao longo da Laudato Si’, exclama: “O mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mis­tério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor” (n. 12).

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*Sinivaldo S. Tavares, OFM é Doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Foi professor no Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia na FAJE e no ISTA, Belo Horizonte.

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