sábado, 29 de outubro de 2016

Meu filho tem que ser homem!

domtotal.com
"Afinal, o mundo ainda precisa de homens, de anthropos".
O conceito “homem” nunca foi tão usurpado na história quanto hoje.
O conceito “homem” nunca foi tão usurpado na história quanto hoje.

Por Pedro Lima Junior*

Sim. Esta é uma premissa que eu não abro mão. Filho meu que nasceu homem tem que ser homem! E não venham com essa história de que estou sendo intransigente, que isso é uma lavagem cerebral e coisa do passado. Aprendi que “educação vem de berço”, ou seja, é de casa que a criança recebe os primeiros valores que seguirá por toda a sua vida. Portanto, meu filho tem que ser homem! Foi assim que Deus o fez, é assim ele será. Homem, com H maiúsculo!

Para um melhor esclarecimento, coloco abaixo dois episódios verídicos que aconteceram recentemente comigo e com meu filho de três anos.

Episódios da vida real 1:

Esses dias minha esposa deixou seu estojo de maquiagem aberto em cima da cama e foi preparar o café da manhã. Enquanto isso, eu estava no chuveiro. Ao sair do banho me deparei com todos os objetos de maquiagem esparramados pelo chão e o meu filho, de três anos, brincando com eles. Ele já tinha passado batom no chão, no lençol da cama, na parede, no rosto, e claro, na boca. No momento do flagra ele passava a esponja de sombreamento nas bochechas e conversava sozinho, sorrindo, como que imitando a mãe que ao se maquiar, conversa alto, num bom humor matinal que eu não tenho. Cheguei de mansinho, olhei para ele e perguntei:

_ O que é isso, Pi?

_ É da mamãe – respondeu.

_ E a mamãe sabe que você está mexendo na maquiagem dela?

_ “Xim!” – disse rapidamente para não gerar dúvidas no pai, e já emendou – Vamos brincar?

Em fração de segundos eu deveria lidar com aquela situação. Era inaceitável para um pai de família que se preparava para mais um dia de trabalho ver o filho fazer aquilo! Parei e olhei. Vi de novo as manchas no lençol que acabara de ser trocado. Cheguei perto para ver a parede que havia recebido há um mês e meio uma pintura nova, e que agora, ganhava uma pintura surrealista de uma criança de três anos. Olhei o rosto daquele artista mirim que parecia o Patati ou o Patatá, sei lá, e, a única resposta que me vinha à cabeça para o seu convite de “vamos brincar” foi:

_ Xiiiiiiim. Vamos! Mas depois você ajuda o papai a arrumar essa bagunça.

_ Êêêê... – reagiu o moleque já passando o batom na minha boca.

Episódios da vida real 2:

Escolhendo as cores da caixa de lápis de cor para colorir um navio, um avião e um carro, que faziam parte do conteúdo da tarefa do colégio do Pi que falava sobre os meios de transportes, ouço uma afirmação determinante:

_ “Ajul é ti minino e rosa é ti minina, tá bom?!”

_ É mesmo, Pi? Por quê? – Indaguei.

_ “Puquê xim!”

Não satisfeito com aquela resposta, típica de adulto medíocre para as questões existenciais, eu não pude simplesmente deixar que o assunto se encerrasse naquele instante. A vida é mais que um “porque sim”. Sabemos que na História, o “porque sim” – que não é resposta – foi considerada por vários séculos, principalmente por instituições tradicionais, a única resposta suficiente e absoluta. Não poderia permitir que o mundo de descobertas de uma criança fosse engessado tão cedo por categorias tão retrógradas. Resolvi provocar o pequeno navegador dogmático:

_ Mas o papai, que é um menino, tem uma camisa rosa.

Instantaneamente, aqueles olhos grandes ficaram arregalados e me fitaram. Um desconfiado e intimidante “Hã?!” saiu de sua boca como que encontrasse o novo mundo. ~ Terra à vista! ~. O peguei pela mão e fomos até o guarda-roupa. Mostrei a camisa rosa de botão e de mangas compridas, e a vesti.

_ Viu? A camisa rosa do papai. Bonita, não é?

(...)

Um silêncio pairou no ar. Três segundos de um silêncio externo que me impediam de ouvir a epifania: de um terremoto que demolia um edifício de bases frágeis abrindo espaço a uma nova paisagem. Depois ele me responde:

_ “Eu tamém quero!”



Acredito que o primeiro parágrafo tenha gerado um certo desconforto nos leitores mais atentos e críticos. Foi de propósito! Após a leitura desses dois episódios, acho que fica claro o “meu filho tem que ser homem”. Percebemos que o conceito “homem” nunca foi tão usurpado na história. Já foi (e em muitos casos ainda é) sinônimo de superioridade, de virilidade, de “sujeito macho”, de provedor-mor, de inteligência; todos esses reafirmando um modelo de sociedade patriarcal e machista. Porém, não me refiro a nenhum desses atributos falsos. Refiro-me aqui ao anthropos, o homem em busca do ser: humanizado e humanizador; independente do sexo, homem e mulher, ou do gênero, como cada um se identifica. Como bem diz um amigo psicólogo: “estamos no humanando, pois, ser humano é gerúndio”.

Por isso, reitero o meu desejo de ter:

Um filho homem ético, que herde os valores fundamentais da vida, abandonando – livremente – receitas morais prontas que deformam o ser humano. Que acolha as pessoas em todas as suas formas de expressão, quer seja nos afetos, na família, nas cores, nas culturas...

Um filho homem que não seja perfeito, mas inteiro, que desenvolva sua autonomia e sua alteridade, valorizando a beleza da amizade e superando o individualismo (e tantos outros ismos) que desidrata a sociedade.

Um filho homem que seja “filho de seu tempo”, que saiba com maturidade e sabedoria – e uma boa dose de criatividade e aventura – ser “filho do mundo” e “para o mundo”, e não tão somente filho de seus pais.

Um filho homem que valorize sua subjetividade e sua mística através de seus afetos, buscando sempre “dar nome as coisas”. Alguém corajoso e consciente de seu lugar, descobrindo e renovando sempre seu “sentido para a vida” e sua corresponsabilidade pela “casa-comum”.

Idealismo de um pai? Talvez seja. Mas a humanização é um idealismo histórico, meio utópico, meio melancólico. “Sejamos realistas exijamos o impossível”, já dizia os muros de Paris naquele maio de 1968. Hoje, idealizar, sonhar e lutar por um mundo melhor se tornou coisa de gente à toa que não acordou para a vida. Mas que vida? E quem de fato dorme? Na semana em que um jovem estudante secundarista do Paraná foi assassinado em uma ocupação, uma outra jovem, Ana Júlia, de 16 anos, foi à tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná mostrar que o jovem que morreu ainda vive, nela, nos demais estudantes e em todos nós. Assistindo o vídeo percebe-se que sua fala doía a consciência dos presentes, principalmente dos nobres deputados. Uma menina de 16 anos se humanizava, lembrando do seu amigo assassinado que lutava pela educação: “A gente não pode cruzar os braços para isso. [...]. Nós estudantes estamos aqui por ideais [...]. A gente está aqui por uma luta e a nossa bandeira é a educação e a gente não vai largar ela [sic] tão fácil”. Ana Júlia nos humaniza!

Aliás, o Evangelho também é um idealismo, principalmente quando nos referimos à sua ética crística, e não aquela pseudo-ética que transformou o Evangelho em mercadoria da prosperidade e em legitimação para as guerras e preconceitos. O Evangelho deixa de ser apenas idealista e se torna, de fato, realidade quando o vemos sendo praticado por pessoas simples, extremamente felizes e inquietas, consigo mesmas e com o mundo. Repare! Uma dica: elas nem sempre estão nas mídias do ramo.

Eu sei que os pais não são os únicos “formadores” do(a) filho(a). Já fui só filho. Hoje sou filho e pai. E percebo que conheci mais a vida fora do ninho da primeira família que dentro. Contudo, a interface usada para filtrar e discernir as “coisas” que experimentava (e experimento) são os princípios fundantes (não fundamentalistas. Refiro-me aqui a essência) que me fazem querer ser gente, oriundos da primeira formação. Houve erros em algumas fundações? Sim. E acredito que também errarei em alguns fundamentos com meu filho, talvez pelo excesso ou quem sabe pela falta. E o importante aqui não é não errar ou só acertar, mas, a priori, refletir, corrigir, ressignificar, contemplar e agir de novo, permitindo que a História seja, antes de tudo, Salvífica. Afinal, o mundo ainda precisa de homens, de anthropos. Ou seja, de homens e mulheres de verdade! Homens a imagem e semelhança de um Deus que não sabe ser outra coisa a não ser Amor.

*Pedro Lima Junior é pai do Pi e esposo da Si. É historiador, cientista da religião, professor, inaciano, atleticano e gosta de escrever informalmente no blog http://pedrolimajr.tumblr.com/. Colabora agora no site Dom Total.

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