terça-feira, 18 de outubro de 2016

O Corpo é símbolo da alma

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Através de nosso corpo, podemos velar nossos sentimentos e desejos mais íntimos.
Nossa corporeidade é o espaço em que nos recolhermos na profundeza abissal do próprio mistério.
Nossa corporeidade é o espaço em que nos recolhermos na profundeza abissal do próprio mistério.

Por Sinival S. Tavares*

Se auscultarmos nossa experiência mais profunda, no entanto, descobriremos que corpo e alma não são entidades separadas, mas dimensões de uma só e mesma vida. Por esta razão, alma e corpo não são duas coisas opostas, nem justapostas e menos ainda contrapostas. Entre corpo e alma vigoram relações de reciprocidade e complementaridade. São dimensões distintas, mas inseparáveis. Corpo e alma são reciprocamente implicados. “O que é a alma? – pergunta-se Mário Quintana – “a alma é aquilo que em mim e em você se pergunta o que é a alma”. O corpo é, portanto, o símbolo da alma. Pois como diz Leonardo da Vinci: “A alma deseja estar com seu corpo, porque sem os instrumentos orgânicos de tal corpo, nada pode operar nem sentir”. E, de maneira enfática, afirma Oswald de Andrade: “O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo”.

Se, de fato, “o símbolo leva a pensar” (Paul Ricoeur), somos então desafiados a mergulhar-nos na simbologia do corpo para dela haurir seu mais originário sentido. Este caráter intrinsecamente sacramental e simbólico do corpo nos é descrito poeticamente pelo teólogo Prudente Nery, de saudosa memória, como um típico caso de antropofania:

“É aqui, em nossa corporeidade, na precariedade de alguns gestos e palavras, que se corporifica e se faz visível a invisibilidade de nosso mistério. O corpo é verdadeiramente sacramentum hominis, a forma visibilis ejus invisibilitatis. É no corpo que o homem, deixando a sua obscuridade inviolável e sua absoluta alteridade, resplandece e se dá numa palavra que consola e abençoa, que reanima e perdoa, num gesto que nos restaura, numa dádiva que nos faz sorrir, numa proximidade que nos encanta. Corpo é, pois, muito mais do que apenas este amontoado orgânico de células, a nossa carne. Ele é também o olhar, a destreza dos dedos, a generosidade das mãos, a palavra, o ouvir, o bailar, o drible, o saltar, o dobrar os joelhos, o suor, a lágrima, a luta, o afago que se dá e se recebe, o beijo, essa carícia dos corações, enfim: tudo aquilo que somos para fora e de fora recebemos. Uma antropofania é a sua corporeidade. Quando o corpo a isso se presta, há uma profunda identidade entre nós e ele. É o esponsalício do corpo e da alma...”.

Esta circularidade recíproca e complementar entre corpo e alma nós a experimentamos em nós mesmos. É por intermédio de nosso corpo que nos relacionamos com o mundo que nos circunda: damo-nos a ele e dele recebemos tudo aquilo que nos marca de modo indelével, vindo a constituir nossa identidade mais profunda. É vivendo no corpo que forjamos nossa própria identidade através de relações que nos fazem ser o que somos e acolhemos impressões que nos marcam e nos moldam para sempre. Nem a morte será capaz de destruir as marcas destas relações e impressões; elas restarão cravadas dentro de nosso eu mais profundo. Se com a morte, cessa esse nosso corpo somático e biológico, a corporeidade que nele e através dele se forjou não termina no vazio. Essa corporeidade que foi amadurecendo dentro do casulo do corpo biológico pertence à identidade da pessoa e, por isso, se transfigura no momento em que seu corpo será reerguido para além da morte. As marcas indeléveis que nos foram impressas pelo mundo, em nossa existência corporal, através de nossas relações circunstanciais, permanecem para além da morte e do desaparecimento de nosso corpo biológico. Elas vincaram nossa vida de distintas maneiras: incomodando-nos, desafiando-nos, inquietando-nos, provocando-nos, purificando-nos, amadurecendo-nos...

Mas, como todo símbolo, o corpo também manifesta seu lado sombrio: sua não-identidade, seu velamento. Em determinados momentos, experimentamos a incapacidade visceral do corpo em expressar a infinita riqueza que sentimos palpitar no mais íntimo de nós. Trata-se de uma experiência de verdadeira inadequação entre o que exprimimos mediante nosso corpo e o que experimentamos no âmago de nós mesmos. É quando sentimos que nosso corpo nem sempre é a morada de nosso ser. Muitas vezes, ele se nos afigura como um limite intransponível e como causa de um sofrimento terrível. Quantas vezes sentimos pelo palpitar ansioso de nosso coração que ele quer voar, mas é impedido pela carne que impassível o retém. Outras vezes a saudade nos transporta em pensamento e sentimento para longe, junto da pessoa amada, mas somos violentamente impedidos pela inércia e lentidão de nossos pesados e indolentes corpos. Quantas vezes testemunhamos a dilaceração horrível entre a lucidez de nosso espírito que, ainda ágil, se põe a imaginar e a sonhar e a inércia de nossos braços e pernas que não respondem mais aos estímulos da mente e do coração. Para não falar da atroz experiência de corpos cuja força e vigor são completamente sugados por dores inexprimíveis que acabam minando toda e qualquer alegria de viver.

Esse velamento, como em toda realidade simbólico-sacramental, pode ser intencionalmente querido. Sob as aparências de um sorriso aberto, podemos ocultar tamanha tristeza. Como também por meio de uma alegria aparente, podemos dissimular nossa dor regada por uma torrente de lágrimas. Com um beijo podemos selar nossa mais vil traição. E isso porque podemos, através de nosso corpo, velar, dissimular, esconder nossos sentimentos e nossos desejos mais íntimos.

Por tudo isso, a presença simbólico-sacramental do mistério de nosso eu na visibilidade de nossa corporeidade se dá sempre na iminência de uma ausência. Trata-se sempre de uma presença que se dá no âmbito de nossa saudade, aceno de seu mistério. Assim sendo, nossa corporeidade é o espaço em que nos encontramos, nos saudamos, para nos recolhermos, cada um, na profundeza abissal de seu próprio mistério. Como escreve a grande poetisa Cecília Meireles: “Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto”.
*Sinivaldo S. Tavares, OFM é Doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Foi professor no Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia na FAJE e no ISTA, Belo Horizonte.

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