terça-feira, 1 de novembro de 2016

Olho algum jamais contemplou!

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A memória dos fiéis defuntos e o Mistério da comunhão dos santos
Quem crê não morre, tem a vida transformada.
Quem crê não morre, tem a vida transformada.

Por Sinivaldo S. Tavares*

A tradição litúrgica cristã legou-nos o costume de celebrar praticamente juntas a memória dos fiéis defuntos e a solenidade de todos os santos e santas. Há lugares em que o acento recai sobre a celebração do dia primeiro de novembro, solenidade de todos os santos; outros há, como no caso do Brasil, em que a centralidade é posta no dia de Finados, 2 de novembro, data em que se celebra a memória de todos os fiéis defuntos. Importante é não perder de vista a íntima relação que existe entre ambas as recorrências. Vigora, entre elas, uma sadia reciprocidade, posto que, só se celebra, de fato, com sentido a memória viva dos fiéis defuntos, tendo como pressuposta a fé na comunhão dos santos.

O Concílio Vaticano II (1962-1965), em sua Constituição Dogmática sobre a Igreja, intitulada Lumen Gentium, recuperou-nos a fé na comunhão dos santos, salientando sua imprescindibilidade no tocante à eclesiologia de comunhão, nota distintiva da Igreja de Jesus Cristo. Com efeito, a comunhão que nos foi oferecida gratuitamente por Jesus Cristo, e que culminou em seu mistério pascal, alcança-nos com tamanha intensidade capaz de abraçar a totalidade dos seres humanos para além de toda e qualquer separação, indo além inclusive dos abismos mais obscuros da morte. Por isso o referido texto conciliar fala da comunhão dos santos que se revela na efetiva comunhão entre a igreja ainda peregrina neste mundo e a igreja triunfante, ou seja, a comunidade daqueles e daquelas que nos precederam na morte e que gozam, já no presente momento, da plenitude da vida junto do Pai.

Lemos em um dos prefácios próprios da Missa dos fiéis defuntos: “Ó Pai, para os crêem em Vós, a vida não é tirada; mas transformada. E desfeita esta nossa habitação terrestre, nos é dado nos céus, um corpo imperecível”. Essa é propriamente a esperança que sustenta as comunidades eclesiais ao longo de seu sinuoso itinerário histórico. Por essa razão, fazemos memória de nossos irmãos e irmãs defuntos e não apenas nos limitamos a recordar-lhes ou a simplesmente lembrar-se saudosamente deles. A vida deles e delas foi transformada, não lhes foi tirada. O fato que eles não participem mais do nosso convívio histórico, fisicamente, não significa que a vida deles foi extinta. Eles vivem junto de Deus e, portanto, podem ser experimentados como estando mais próximos ainda de nós. Pois, nossa fé nos diz que morremos para ressuscitar e não vivemos para morrer, como insistem alguns.

A profissão de fé que recebemos no dia de nosso batismo nos diz, de forma contundente, “Creio na ressurreição da carne”. Qual o sentido desta profissão de fé que se encontra inscrita em nosso Símbolo de fé, transmitido de maneira ininterrupta desde os apóstolos até os dias que correm? O sentido da “ressurreição da carne” seria mais bem compreendido mediante uma tríplice formulação: 1) creio na ressurreição do corpo, concebido como a existência histórico-biográfica de cada um/a de nós; 2) creio na reconciliação da história, compreendida como transformação do mundo em que vivemos; 3) creio na transfiguração da inteira realidade criada, nossa casa comum.

Cada pessoa é destinada a participar da vida mesma da Trindade Santa. Esta é a vocação primeira à qual somos todos predestinados. Paulo, o apóstolo incansável, convida-nos a conceber a própria existência como dom e vocação: predestinados pelo Pai, no vigor do seu Espírito, a sermos filhos no Filho. A consciência de termos sido predestinados à filiação divina provoca-nos à consciência correlata de que a existência é incumbência e resposta: o Espírito nos conforma a Cristo, para que nos tornemos filhos no Filho.

Paulo conclama-nos, todavia, a participar ativamente do processo de nossa própria salvação. Por exprimir justamente a incondicional misericórdia de Deus, a salvação deve carregar em seu próprio bojo os frutos distintivos da nossa participação. Na sua liberdade, Deus quer contar conosco. Não gosta de realizar nada sozinho. Ele conta com a nossa participação, embora isto não comprometa o caráter absolutamente gratuito da sua iniciativa e dos seus desígnios. Ser filho de Deus significa deixar-se conduzir pelo Espírito, pois é Ele, na verdade, aquele que, derramado em nossos corações, dá testemunho ao nosso espírito de sermos filhos de Deus. O deixar-se conduzir pelo Espírito se exprime numa singular ousadia, nota característica dos filhos de Deus. A solidariedade para com Jesus Cristo será a única garantia da verdadeira identidade do discípulo: filho de Deus, irmão de Jesus Cristo e templo do Espírito Santo.

É dentro do casulo de nosso corpo biológico e, a partir dele, através dos inúmeros fios que nos ligam à trama histórica da vida e aos meandros sutis da materialidade do cosmos, que realizamos com lento vagar nossa singularidade mais profunda. A ressurreição, nesse sentido, constitui para cada pessoa o momento de seu desabrochar para a vida verdadeira e plena que todos almejamos. Promessa que esperamos realizar-se um dia. Naturalmente que nenhuma pessoa atingirá a plenitude da vida enquanto essa mesma plenitude não for partilhada pelo conjunto de outras pessoas e, ousaria dizer, da humanidade toda, na plenitude de todo o tempo. Ninguém ressuscita sozinho, posto que a vida não se dá de maneira individual e isolada da trama histórica e material da vida. A vida se dá sempre como uma trama bem intrincada de pessoas e relações.

Creio na transformação da história e na transfiguração da criação. A genuína fé cristã professa que também a História e o Cosmos estão destinados à salvação. Pois, de fato, a ressurreição de Jesus e a efusão do Espírito Santo constituem as primícias dos tempos derradeiros e definitivos. Ao professar que o Espírito, além de nos conformar a Cristo, realiza o lento e oneroso processo de cristificação da história e do cosmos, as comunidades cristãs das origens não fazem outra coisa que levar às últimas conseqüências o princípio que se encontra na raiz mesma da experiência religiosa bíblica. Se Deus se revela na história como libertador e salvador, como garante e sustentáculo da vida nas suas mais distintas expressões, é porque, com toda certeza, ele se encontra “no princípio” como sua origem e razão de ser; e se ele se encontra “no princípio” é porque se fará presente também “no fim dos tempos” como o recapitulador e plenificador da história e do cosmos todo.

Trata-se da segunda e definitiva vinda de Cristo, do seu retorno glorioso entre os seus e da tão esperada parusia. Tudo isso será realizado pelo Pai, na plenitude dos tempos, no vigor do seu Espírito, que é o selo da nossa herança futura. Será o Espírito Santo, na verdade, o grande protagonista dos acontecimentos que caracterizarão os tempos últimos e definitivos. A parusia, entendida como cumprimento de todas as promessas nestes tempos derradeiros, será caracterizada pela segunda vinda de Cristo, desta vez gloriosa. Mas isso só se dará depois que o Espírito Santo tiver completado a sua obra de conformação a Cristo e, portanto, de cristificação da história e do cosmos. Naquele dia, Cristo reconhecerá este mundo como sendo seu Reino e tomará enfim posse do mesmo submetendo a si todas as criaturas. Somente depois de tê-lo assumido como seu, Ele restituirá o mundo a Deus, seu Pai.

Naquele dia, a Jerusalém celeste aparecerá em todo o seu esplendor: “A cidade não tem necessidade de sol nem de lua que a iluminem. Pois a glória de Deus a ilumina, e sua luz é o Cordeiro” (Ap 21,23); e do trono de Deus e do Cordeiro brotará “um rio de água viva, pura como cristal” (Ap 22,1; cf. ainda Jo 4,1 e 7,37-39). Então, aparecerão “um céu novo e uma terra nova” (Ap 21,1) onde “eles serão seu povo e o próprio Deus-com-eles será o seu Deus” (Ap 21, 3b). Naquele dia, o Pai, aquele que dá o Espírito sem medida, tornando-nos filhos no Filho, se revelará plenamente como o princípio sem princípio e, portanto, a origem de tudo e, ao mesmo tempo, a plenitude e a meta da história e da criação toda: “Está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem tiver sede, darei gratuitamente água da fonte da vida. Quem vencer herdará estas coisas e serei seu Deus e ele será meu filho” (Ap 21,6-7).

*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.

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