sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Teologia, Ocupações e PEC do Fim do Mundo (Ou PEC 55)

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A pretensão de desmoralizar as ocupações, por meio de afirmações de que elas são “táticas de guerrilha”, que “os estudantes são invasores”, é posta ao chão, porque não se sustenta..
A percepção da diferença entre grupos sociais revela que há espaços destinados só para alguns,.
A percepção da diferença entre grupos sociais revela que há espaços destinados só para alguns,.

Por Tânia da Silva Mayer*

A PEC 55 (anterior PEC 241), desde que começou a tramitar na Câmara dos deputados, têm gerado muitas discussões, seguidas de reações contrárias em todo o país. Manifestantes, descontentes e indignados com o texto da Proposta de Emenda à Constituição, têm ocupado espaços, a fim de resistir e rechaçar a proposta que já nasceu falida. A PEC 55 propõe alterar o texto da Constituição Cidadã de 1988, com respeito aos artigos 198 e 212, que garantem um investimento mínimo nas áreas da saúde e educação, a partir da receita corrente líquida. Com a aprovação da PEC, essas áreas só receberão investimentos a partir da correção da inflação ano a ano, e isso significa que, com o crescimento populacional e a mudança de cenário da sociedade brasileira, a PEC poderá gerar uma população sem acesso aos serviços primários como a saúde e educação, mas não só.

O período de vigência da PEC 55 seria de vinte anos, o tempo suficiente para nascer, crescer, reproduzir e constituir grupos familiares. É tempo suficiente, também, para ver nascer, crescer e morrer uma população de miseráveis e mortos de fome, que não tem por parte do Estado os investimentos necessários para garantir a seguridade social. Na pizza da PEC da Maldade, o Governo pretende enxugar os gastos cortando investimentos em demandas primárias, enquanto a dívida pública e os pagamentos de juros aos credores nacionais se manterão intactos. Enquanto o governo paga rios de dinheiro a banqueiros, sem um teto que condicione esse gasto, sem a devida auditoria que mostraria aos brasileiros e brasileiras os pormenores dessa dívida pública, a população se sacrificará de maneira subumana naqueles setores em que já é sacrificada.

E como num Estado de Exceção todo dia é dia de golpe, e como tem sido assim desde que o Legislativo e o Judiciário brasileiro emplacaram o “golpe da canetada”, depondo os 54 milhões de votos que elegeram Dilma Rousseff como Presidenta da República, o rechaço e a resistência se fazem necessários, a fim de que os direitos conquistados pelo povo ao longo da história não sejam usurpados com a facilidade fascista dos poderosos que manobram em benefício próprio. É nesse contexto de golpe diário, que os estudantes universitários e secundaristas revelam a força de um povo que não dorme enquanto a sua vida está sendo decidida em jantares custeados com dinheiro público. A força que os estudantes demonstram ter encoraja e dá esperança aos que foram, aos poucos, se cansando da peleja por um Brasil justo e solidário.

Nesse contexto proliferam, dia a dia, as ocupações de estudantes em escolas e universidades. Há uma tentativa de desmotivar, desvalorizar e desacreditar o movimento com a desculpa de que as ocupações ocorrem no final do semestre letivo, atrapalham a vida da comunidade escolar, cerceiam o direito de ir e vir dos que não fazem coro à manifestação. Tudo isso deve ser compreendido num contexto amplo de atrito inevitável na ocupação de espaços.

Ao longo do tempo e da história, espaços são ocupados por populações e isso parece ser algo primitivo em nossa relação com o mundo. Em sociedades hierarquizadas, nas quais o topo social é preenchido por uma minoria detentora do poder, a lei física de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar, ao mesmo tempo, no espaço torna-se irrefutável lei social, de modo que há espaços que são destinados às classes abastadas e outros espaços destinados às classes menos favorecidas.

No Brasil de 2016 essa lei está em voga, e o jornalista Bob Fernandes, no seu comentário ao Jornal da Gazeta de 12 de outubro, recorda certas frases dos homens de bem da política. Segundo Fernandes, “O deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), em uma conversa gravada defendeu: ‘Quem não tem dinheiro não faz universidade’”, e “Diante do espanto provocado por sua frase concedeu: ‘-...Vai estudar na USP...’. Na USP, como se sabe, costumam ingressar os que estudam nos melhores colégios, quase todos privados, pagos”. O comentário-análise de Bob Fernandes mostra ainda que o Presidente Michel Temer afirma que “O Brasil não é só gente como nós” e “existe gente pobre”. A percepção da diferença entre grupos sociais reforça e revela que há espaços destinados para alguns, não para todos.

Está claro que os espaços de educação ainda não são para todos. As injustiças que impedem crianças, adolescentes e jovens de ingressarem e permanecerem na escola devem ser sempre atacadas, a fim de que os quadros de evasão escolar sejam superados. Mas aqueles que compõem as comunidades escolares, e que agora resistem com bravura às arbitrariedades do governo golpista, entendem que a escola e a universidade são espaços conquistados e, portanto, pertencentes aos alunos. As ocupações devem ser lidas à luz da ocupação de espaços já possuídos. Os estudantes ocupam espaços compartilhados com a comunidade escolar, mas espaços que pertencem, de fato, aos estudantes. É um paradoxo. Por isso, a pretensão de desmoralizar as ocupações, por meio de afirmações de que elas são “táticas de guerrilha”, que “os estudantes são invasores”, é posta ao chão, porque não se sustenta. Os espaços ocupados pertencem àqueles que os ocupam, e os ocupam como legítima ação de resistência à PEC do Fim do Mundo, que traz, em seu bojo, o sucateamento de sistemas já sucateados, como é o caso da educação.

O que Deus tem a ver com as ocupações dos estudantes e com a PEC do Fim do Mundo? Muita coisa, afirmam teólogos e teólogas. O Deus de Jesus ocupou-se do tempo e do espaço, limitando-se à história, a fim de que o Reino de Justiça e Paz fosse inaugurado preferencialmente para os pobres. Ele ocupou, Se apossou da humanidade, assumindo para si um corpo de carne, que na fragilidade do tempo, promoveu vida plena e abundante para todos. É com os olhos fixo em Jesus, que veio devolver a dignidade ao ser humano, que o pecado o fizera perder, que os cristãos e cristãs não podem se calar diante dos sistemas opressores que anunciam a morte para os pobres e excluídos. Desse modo, quando os direitos dos pobres e dos trabalhadores estão ameaçados, os cristãos e cristãs somam-se ao coro dos que não se cansam de dizer: “ai de voz os ricos”, que “vendem o justo por dinheiro, o indigente por um par de sandálias. Esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível” (Am 2,6b-7).

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

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