domtotal.com
Necessitamos da música e das artes em geral... para que o invisível salte à nossa vista.
Maioria das músicas tem como enredo experiências de sofrimento e dor. (Divulgação)
Por Sinivaldo S. Tavares*
Dentre as inúmeras questões que compõem o mosaico de nossa existência, nos dias que correm, elegi uma, em particular, que considero desafiante, intrigante até: qual a relação entre a música e as experiências humanas sofridas e, por vezes, dramáticas?
Confesso que sempre me impressionou o fato da maioria de nossas músicas ter como enredo experiências humanas de sofrimento e de dor. E isto se percebe desde o âmbito da música clássica, passando pela nossa rica e variegada música popular brasileira até chegar às nossas músicas de “raiz” e as assim chamadas “sertanejas”. À primeira vista, esta constatação pode parecer contraditória. Será mesmo verdade que existe uma espécie de aproximação intrínseca entre a música e as experiências angustiantes, tristes e sofridas?
A música talvez represente uma das formas mais refinadas da nossa cultura. Cultura lembra cultivar, cuidar... O ser humano não é apenas um ser dotado de linguagem. No universo da linguagem e por meio dela a inteira realidade mendiga cuidado, atende o momento de ser reverenciada... E assim a linguagem revela o que de fato ela é, vale dizer, celebração, cantoria, poesia... Na música, as palavras assumem um particular encanto, ficam mais leves e fluidas, chegam a espiritualizar-se seguindo o ritmo das melodias. É a experiência do Belo, da harmonia... A música tem tudo a ver com o Belo. E como gostava de repetir Dostoievski: “A Beleza salvará o mundo”.
Mas, posto que a música seja por excelência a experiência do Belo, não resulta ainda mais paradoxal esta inusitada proximidade dela com a dor e o sofrimento? Talvez propriamente aqui resida o segredo mais recôndito da música... acenar sutilmente para a verdadeira e originária experiência do Belo. Os clássicos costumavam salientar a reciprocidade entre os elementos da tríade: Bom, Verdadeiro, Belo. Existe, de fato, uma estreita interdependência entre os três. Acometidos pelo vírus da compartimentação, modernos que somos, separamos o que jamais poderia ser desmembrado... e assim chegamos a um conceito de Beleza totalmente desvinculado da ética e da busca da verdade. Daí concebermos beleza como o resultado de horas e horas de academia ou, talvez o que seja ainda pior, o imediato resultado da ingestão de poções mágicas...
Ao deixar transparecer a beleza escondida das situações mais autenticamente humanas, porque reveladoras do humanum na sua condição mais própria, nua e crua, - e por isso Bela, realmente Bela! - a música combina harmoniosamente, em tom de celebração, elementos aparentemente díspares e irreconciliáveis. Nisto a música se assemelha muito às artes plásticas e à literatura... São todas, sem exceção, solidárias neste imprescindível processo de propiciar o aparecimento da beleza mais genuína, nua e crua e, portanto, sem disfarces, máscaras ou qualquer tipo de maquiagem.
É a beleza do sapato velho e surrado do camponês ou dos dourados campos de trigo, de Van Gogh... é a beleza de uma Pietà de Michelangelo onde Mãe e Filho, juntos, sofrem a dor do abandono... é a beleza das formas tão humanas de um Rodin... é a beleza dos poemas do quotidiano, cheios de encanto e repletos de mistério, de uma Adélia Prado ou de uma Cora Coralina... é a beleza sutil da pedra no meio do caminho de nosso saudoso poeta Drummond... é a beleza do amor cantado e decantado na voz melódica e romântica de um Vinícius de Morais... é a beleza impar das Gerais na singular voz do Milton Nascimento... é a beleza da vida pulsando nos diálogos de nossos inúmeros repentistas, poetas anônimos e cantores populares espalhados por este país a fora...
Diria, parafraseando Saint-Exupèry, que “O Belo é invisível aos olhos”. Por isso necessitamos da música e das artes em geral... para que o invisível salte à nossa vista, para que a Beleza aflore em meio à nossa vida tão pragmática e funcional... para que a festa aconteça... e sejamos assim todos tocados por esta experiência tão humana e que, por isso mesmo, se revela incrivelmente divina!
*Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM. Frade franciscano. Doutor em Teologia Sistemática. Atualmente é professor desta mesma disciplina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto São Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG.
Nenhum comentário:
Postar um comentário