terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Genealogia de um acidente

domtotal.com
Temer é a encarnação na vida real de um personagem clássico da literatura e da televisão brasileiras.
Temer, presidente pavoroso por "acidente" e "medalhão" por vocação. (Fotos Públicas)
Por Alexis Parrot*

Há um massacre ocorrendo diariamente por trás das grades das prisões brasileiras. Do final de dezembro para cá, já se conta uma centena de mortos em chacinas dentro de presídios no Amazonas e em Roraima. Os episódios ganharam as manchetes pela envergadura - não pelo ineditismo. Ecoam o que houve no complexo penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, em 2014, onde também reinaram decapitações.

E nos obrigam a recordar a célebre frase de José Eduardo Cardozo, então ministro da justiça; que "preferia morrer" ficar preso no sistema penitenciário brasileiro e que nossas prisões são "masmorras medievais".

E aí me vem o presidente chamar de "acidente pavoroso" essa tragédia diária e ininterrupta que se arrasta por décadas. Na hora que estoura uma rebelião mais violenta, medidas paliativas são postas em prática. Mas o problema segue, sem solução - por falta de capacidade e de interesse daqueles que teriam os meios e o poder para intervir.

Amante das letras (e do "ao pé da letra") como ele só - e indignado com a ignorância do populacho que se revoltou contra o eufemismo usado por ele para designar o massacre, achou por bem publicar em sua conta pessoal do twitter alguns sinônimos para "acidente" que poderiam justificar o que, na verdade, não passou de descaso.

Temer é a encarnação na vida real (e infelizmente na nossa vida pública) de um personagem clássico da literatura e da televisão brasileiras. Aquele enganador que, usando-se de um verniz de erudição e empolamento, impõe-se como intelectual para pairar acima da gleba e da malta.

Ele, que já é chamado galhofeiramente de vampiro ou de "mordomo de filme de terror" (conforme apelidado por outro personagem não menos aterrorizante da história política brasileira, o já ido Antonio Carlos Magalhães - ou Toninho Malvadeza, à boca pequena), pode agora ser também considerado como o irmão mais amedrontador do Professor Astromar Junqueira (Rui Rezende, em Roque Santeiro).

O presidente do Centro Cívico Asabranquense, além de gostar de falar bonito e difícil (todos achavam lindos os seus discursos, mas ninguém entendia patavina do que ele dizia), era também o lobisomem que rondava a cidade todas as noites de quinta para sexta - quando calhava de ser lua cheia.

O parentesco se estende também a outro professor de novela, o Praxedes de Menezes, notório sábio e editor do jornal de Tubiacanga (Fera Ferida, 94). Esse, encarnado por Juca de Oliveira, não se transmutava em monstro nenhum, mas guardava dentro de si outro tipo de monstruosidade - que também podemos relacionar a esse triste vate que ora nos presidencia: a cobiça.

A novela Fera Ferida foi urdida por Aguinaldo Silva, uma costura muito bem feita de histórias e personagens de contos de Lima Barreto - no ano em que se comemorava seu centenário. E é muito bom que nos lembremos do escritor genial que sofreu a vida inteira por sua condição social e de cor; um dos maiores combatentes dessa figura pernóstica e infame que hoje vemos personificada no sujeito que ocupa o mais alto cargo do serviço público brasileiro.

Sim, lembrar Lima Barreto é fundamental para entendermos a personalidade de Michel Temer: seguindo os galhos e ramagens dessa árvore genealógica do estilo do presidente, certamente encontraremos lá também o baiano de Canavieiras, de sobrenome Castelo, que chegou a cônsul em Havana, tudo porque era "O Homem que sabia Javanês".

O delicioso texto sobre um vigarista de ocasião que passou a perna em meio mundo - por apresentar-se como sabedor de algo que ninguém sabia (sem o saber) - também já foi tema de duas não menos deliciosas versões para a televisão. Primeiro, na TV Cultura, em 81, vivido por Ewerton de Castro, em cinco capítulos dirigidos por Geraldo Vietri e, depois, como episódio solo da série Brasil Especial, na Globo, onde Guel Arraes adaptava grandes textos brasileiros para a televisão. Dessa vez, foi Marco Nanini quem simulou saber o javanês - da mesma forma como Temer - amante inveterado de ênclises e mesóclises - simula saber mais do português do que nós, pobres mortais.

Porque Temer é isso, como imortalizado por Machado de Assis em seu conto "Teoria do Medalhão". Em um diálogo, um pai dá para o filho que completa a maioridade o maior presente que pode: as orientações para que se torne um "medalhão".

Não ter ideias próprias - melhor ainda, não ter idéia nenhuma -; levar sempre consigo citações em latim ou máximas no bolso do casaco; exercitar-se para ser mestre na arte de "pensar o pensado"; imaginação, nenhuma; filosofia: "na língua e no papel, alguma, na realidade, nada"; ironia, nunca.

E é essa a novela nossa de cada dia: Temer, presidente pavoroso por "acidente" e "medalhão" por vocação.

Sobre o Globo de Ouro

The Night Manager

A série inglesa (co-produção entre a BBC e o canal AMC) The Night Manager foi uma das grandes vitoriosas do Globo de Ouro. Na categoria minissérie de TV ou telefilme, abocanhou merecidamente todos os troféus de atuação: melhor ator para Tom Hiddleston, melhor ator coadjuvante para Hugh Laurie e melhor atriz coadjuvante para Olivia Colman (a incansável, incorruptível e grávida agente do MI-5 que recruta o concierge sedento por vingança vivido por Hiddleston).

Em julho de 2016 escrevi um artigo sobre a minissérie (que pode ser visto nesse link: http://www.domtotal.com/noticia.php?notId=1047236) onde, além de louvar as qualidades do elenco consagrado ontem, também discutia as articulações entre televisão e internet e denunciava interesses econômicos por trás do início do desmonte da TV Brasil.                    

Uma resposta ao OSCAR

Ao contrário do Emmy - que ignorou a polêmica racial dos Oscars de 2016 - a Associação dos Correspondentes Estrangeiros de Hollywood (responsável pelo Globo de Ouro) soube posicionar-se também politicamente e laureou produções e profissionais representantes de temáticas anti-racistas.

Muito mais antenado ao momento perigoso que vive o mundo, a começar pela ascensão de Donald Trump como próximo presidente dos Estados Unidos, o Globo de Ouro mostra - com a gama étnica de escolhas com que nos brindou - a impossibilidade  de se construir uma indústria como a do entretenimento audiovisual (ou uma nação) com ódio, separatismo ou preconceito.

*Alexis Parrot é diretor de TV e jornalista. Escreve às terças-feiras sobre televisão para o DOM TOTAL.

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