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Nunca esqueci o impacto que Construção me causou.
Escutei e reescutei Construção até 'acabar' com a agulha e 'furar o disco', como se dizia. (Reprodução)
Por Eleonora Santa Rosa*
"Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado”.
Nunca esqueci o impacto que Construção me causou, quando ouvi a canção pela primeira vez. Fiquei impressionada com a experiência do ‘embaralhamento’ dos versos, da força da melodia, do acachapante arranjo do tropicalista Duprat, ousado e inusual, que conferiria uma extraordinária potência à antológica gravação de Chico Buarque e dos rapazes do MPB-4.
Era muito nova, tinha apenas nove anos, e estava tomando sol no quintal da minha casa, na Rua Leopoldina, em Belo Horizonte, tendo como companhia próxima o cachorro da família, Athos de Samoara, pastor alemão de meu pai, imponente em seu canil defronte ao pé de limão capeta, alaranjado tal qual o short que usava, lembrança vívida que me restou de um período muito difícil da vida doméstica familiar, guardado precioso no canto da memória que teima em apagar quase tudo daqueles tempos. Não tinha idade para entender a dimensão do que ouvia, mas aquilo me marcou tanto que pedi à minha mãe que comprasse o LP, que tinha o mesmo nome daquela música estranha e contundente.
Era o ano da graça de 1971, menos de uma década depois, já informada e atenta, e iniciando meus passos na seara cultural, compreenderia a verdadeira dimensão dessa obra referencial, a experimentação e desconstrução da letra, o arranjo dissonante sob a batuta do extraordinário maestro Rogério Duprat. Duprat, curiosamente, se hospedaria em nossa casa, pouco depois, trazido pelo meu irmão músico, Márcio Melão, nos áureos tempos do Festival de Inverno da UFMG. Figura marcante, chamava atenção por seus cabelos longos, por seus óculos de lente grossas, sua túnica branca, indumentária muito diferente dos padrões da época. Dele também não me esqueceria.
Escutei e reescutei Construção até 'acabar' com a agulha e 'furar o disco', como se dizia. Cantava de cor e salteado todas as músicas, e, desde então, passei a ter meu cantor preferido. Nesse tom, fui juntando a mesada, comprando outros discos dele, pedindo tantos outros diferentes de presente, acabando por formar uma discoteca ‘buarqueana’, complementada por recortes de matérias, entrevistas com o próprio, reportagens de toda ordem. Em suma, finalmente, tinha um ídolo para chamar de meu!
Aficionada fui por anos e anos, li todos os seus livros até Benjamin, da Fazenda Modelo às peças teatrais, como a proibidíssima Calabar e a impactante trágica releitura moderna de Medéia em Gota D'água". Acompanhei o surgimento e a revelação de seu heterônimo Jorginho da Adelaide, saída possível, esperta, em tempos de repressão e censura e do belíssimo Sinal Fechado. Vi com atenção sua passagem pelo deliciosa Ópera do Malandro dialogando com Brecht e sua Ópera dos Três Vinténs, não sem muito antes curtir seu Saltimbancos. Sabia tudo dele, de sua vida/obra.
Não me lembro quando exatamente comecei a não ter mais tanta proximidade com seus discos. Outros interesses sobrevieram e, no campo da MPB, Caetano passou a me interessar mais, nada excludente, por certo. Chico sempre foi e será Chico, sem igual.
Por tudo isso, foi com imensa alegria que assisti na semana passada, em BH, o show de estréia de sua nova turnê, depois de muito tempo longe dos palcos. 'Enxuto', lúcido, 'inteiro', sua presença luminosa encarna a beleza e a potência da nossa arte, da nossa música. Um verdadeiro e derradeiro sopro de esperança em meio à selvageria do Brasil atual.
Felicidade por revê-lo, por ouvi-lo, por tê-lo perto e admirá-lo. Nesse reencontro de memórias afetivas tão intensas e longínquas, o destino surpreendeu e proporcionou novo encontro. Desta vez, na noite carioca. Calhamos de estar no mesmo restaurante em Ipanema. Não consegui não dizer nada, ‘fingir’, como os cariocas, que não estava nem aí. Fui direto à sua mesa e disse-lhe da alegria de ter estado em seu show, de sabê-lo tão bem, tão essencial. Lindo, simpático, refinado, sorriu gentilmente. Para minha sorte, sentei-me numa mesa defronte à sua, em posição privilegiada, que me permitiu fitá-lo. Ao final, quando se levantou para sair, caminhou em minha direção, mas, para a minha tristeza, o garçom se interpôs entre nós e lá se foi meu ídolo madrugada adentro.
Feliz Natal, Chico querido! Que sorte a nossa por tê-lo!
Feliz Natal extensivo a todos os meus queridos leitores.
*Jornalista, empreendedora e produtora cultural.
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