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O pontífice argentino segue uma linha de governo muito parecida com a de João XXIII à época do concílio.
O ecumenismo era um dos temas mais caros a João XXIII, o que não é diferente em tempos de Francisco. (Reprodução/ L'Osservatore Romano/ ANSA)
Por Mirticeli Dias de Medeiros*
Em 2013, muitos vaticanistas levantaram a hipótese de que cardeal Bergoglio, caso não tivesse escolhido o nome “Francisco”, certamente teria escolhido “Paulo” em referência a Paulo VI. Alguns ainda não conheciam, até então, a personalidade do papa argentino. Mas vamos a Paulo VI…
Como se sabe, o então arcebispo de Milão (Itália), cardeal Montini, teve uma participação expressiva durante o concílio Vaticano II. Apesar de ser um homem “curial”, com larga experiência de colaboração com a secretaria de estado do Vaticano à época de Pio XII, foi considerado alguém fora do standard justamente por seguir uma linha oposta àquela sustentada por alguns “homens de cúria”, muitos dos quais contrários às aberturas propostas pela assembleia conciliar.
Mais tarde, como sucessor de João XXIII, é ele quem assume a importante tarefa de conduzir o concílio e não permitir que ele fosse enfraquecido por causa da complexidade das questões levantadas e das pressões impostas por uma minoria que visava desviá-lo de sua proposta inicial: aquela de ser um concílio pastoral, não doutrinário-jurisdicional. Era esse o concílio que João XXIII havia idealizado e impulsionado. Enquanto Paulo VI conduziu o concílio com muita diplomacia, João XXIII o havia feito com muita ousadia.
Quando o Vaticano II foi convocado, João XXIII sentiu uma certa resistência da cúria romana em relação à realização do próprio concílio. De um lado, muitos o consideravam um papa idoso e de transição, fatores que o impediriam de levar a cabo a própria assembleia. Do outro, entre aqueles que aceitavam parcialmente o concílio, sustentava-se a posição de que o Vaticano II deveria ser uma mera continuação do Concílio Vaticano I bruscamente interrompido por causa da guerra franco-prussiana de 1870. E é por causa dessas questões que muitos historiadores falam que a visão reformadora de João XXIII o levou a viver uma certa “solidão”.
Depois de quase 5 anos de pontificado de papa Francisco, é impossível não comparar o seu pontificado ao pontificado de João XXIII. Apesar do papa argentino nunca ter dito claramente que se inspira no programa de governo conduzido pelo “papa bom” na década de 50, muitas de suas atitudes confirmam essa constatação. É inegável que apesar de mais de sessenta anos que os separam, ambos os papas chegaram ao cerne da questão: o verdadeiro inimigo da Igreja é a enorme crise de fé. Sendo assim, é urgente, por exemplo, estabelecer um diálogo ecumênico ousado, de modo que as várias denominações cristãs se unam para combater esse “oponente”. O ecumenismo, inclusive, era um dos temas mais caros a João XXIII, o que não é diferente em tempos de Francisco.
Outro aspecto que une os dois pontificados é aquele de um papado livre de condicionamentos. Tanto João XXIII quanto Francisco defendem que a cúria deve ser um instrumento na condução da Igreja universal, não uma ameaça à colegialidade. Basta pensarmos que João XXIII na fase preparatória do concílio não permitiu que as propostas de debate fossem elaboradas pela cúria romana, mas partissem dos bispos do mundo inteiro. Por sua vez, Papa Francisco, ao criar a comissão de cardeais para a reforma da cúria romana - o C9 - pela primeira vez na história da Igreja escolheu prelados “não curiais” para auxiliá-lo nessa empreitada. Coincidência ou não, Francisco foi quem canonizou João XXIII, o que contribui para unir até “espiritualmente” a figura desses dois papas corajosos.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e bacharel em História da Igreja e bens culturais pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, e atualmente, mestranda em História da Igreja na mesma instituição. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
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