quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

O cisco (parte 2) – Você se arrepende de não ter filhos?

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O que me abalou hoje foi ver aquele garçom.
O que me abalou hoje foi ver aquele garçom. (Reprodução)
Por Pablo Pires Fernandes*

A revelação de Adélia provocou em Roberto um sentimento ambíguo. Não o incomodava o fato de ela ter cometido tal ato, mas ele se perguntava por que ela nunca tinha lhe contado sobre algo tão marcante, tão violento. Ela tinha apenas 19 anos, pensava, condoído, enquanto estacionava o carro na garagem do prédio na Rua Antônio Aleixo.

Veja também: O cisco (parte 1)
O silêncio no elevador foi sufocante, mas ela interrompeu o afã dele e, antes que soasse qualquer palavra, falou:

– Vamos acabar de chegar, calma, a gente vai conversar sem pressa. E piscou o olho castanho esquerdo como uma grande amiga, o que de fato era.

No sofá – ele com um copo de uísque, ela com um copo d’água – Adélia começou:

– Sabe o que é estranho? Não é o fato de eu ter feito um aborto aos 19 anos, foi difícil, claro, tivemos que vir para Belo Horizonte e não tínhamos grana, mas uma tia dele, uma pessoa adorável, pagou tudo e, felizmente, deu tudo certo, e ele foi gentil e me apoiou e sempre me dizia que a opção era minha e esteve ao meu lado todo o tempo, mas não tínhamos a menor condição, a gente era muito menino. Depois disso, não consegui mais ficar com ele, por mais que fosse um amor de pessoa, ele era doce, muito doce, só que eu tive uma repulsa que não pude controlar. Mas foi assim, não tinha outro jeito, eu não conseguia. Aos poucos, a lembrança foi ficando mais leve e hoje acho triste que tenha sido desta maneira, que eu tenha me isolado e o repelido. Só que nunca senti qualquer culpa. Isso é importante! Fiz porque não queria criar um filho nas condições que eu tinha na época. E tenho certeza, hoje, com 49 anos, que foi a decisão certa, não me arrependo de nada.

Enquanto falava, os olhos castanhos de Adélia miravam os olhos castanhos de Roberto. Às vezes, os olhos dela se voltavam para o chão ou para o nada, desviavam-se para, novamente, se fixarem no fundo dos olhos dele. Roberto retribuía um olhar carinhoso, compreensivo, com certa curiosidade.

– Isso é uma parte, disse Adélia, tomando o copo de uísque das mãos de Roberto.

– Sim.

– A questão do aborto eu superei há muito tempo, é um passado bem longínquo. O ponto é que, de alguma maneira, aquilo me mudou. Acho que é um trauma mesmo, no sentido estrito. A responsabilidade foi minha. Eu o seduzi e o levei para a cama e quis transar com ele. Era virgem e tinha 19 anos e todas as minhas amigas já tinham transado. Então, tem essa coisa de adolescente, impulsiva, inconsequente. Daí eu fiquei grávida logo na primeira vez. Eu resolvi tudo, tive que ser forte e coloquei na minha cabeça que nunca teria filhos, desisti de ser mãe – esse projeto tão desejado pela maioria das mulheres, elas que insistem em reafirmar a beleza e a completude de ter parido alguém. E, até hoje, segui aquela decisão.

– Você se arrepende de não ter filhos?

– Não, isso eu resolvi faz tempo. O que me abalou hoje foi ver aquele garçom. A gentileza dele me fez pensar na hipótese de eu ter parido uma pessoa, alguém. Aquele moço me fez pensar nessa hipótese. Como teria sido a minha vida se eu não tivesse feito aquele aborto?

(continua...)

*Pablo Pires Fernandes é jornalista, subeditor do caderno de Cultura do Estado de Minas e responsável pelo caderno Pensar.

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