terça-feira, 6 de março de 2018

Não quero flores

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Nós mulheres somos vítimas da sociedade brasileira radicada numa compreensão machista e misógina do mundo.
Alguns modos de comemoração do dia da mulher não fazem justiça à memória que fundamenta esse dia e tão pouco se interessa por isso.
Alguns modos de comemoração do dia da mulher não fazem justiça à memória que fundamenta esse dia e tão pouco se interessa por isso. (Joshua Newton/ Unsplash)
Por Tânia da Silva Mayer*

No dia 08 de março são comuns as caixas de e-mail lotadas de mensagens sobre a mulher. As mídias sociais e os aplicativos de mensagem também são superabundados por textos e imagens que, na maioria das vezes, insistem numa compreensão de nossas vidas na esteira de uma suposta fragilidade e passividade da mulher diante dos acontecimentos do mundo. Um clima de romance paira no ar e somos louvadas e incensadas naqueles aspectos nos quais a cultura e seus sujeitos sempre violentaram nossos corpos, nossa moral e nossa psique. Esse dia da mulher que preenche as pautas dos programas de auditório, estes que entretém as famílias brasileiras enquanto a roda da maldade gira fazendo vítimas, não faz justiça à memória que fundamenta esse dia e tão pouco se interessa por isso.

Nós mulheres somos vítimas da sociedade brasileira radicada numa compreensão machista e misógina do mundo. O ódio e a aversão a nós, aos nossos problemas e dilemas, ao nosso posicionamento político, ao que queremos e fazemos com nossos corpos e nosso sexo, ao modo como nos relacionamos com o transcende e entre nós, seguem velados em discursos que oferecem as flores que também cobrirão nossos caixões reais e metafóricos ao longo da vida. Sem nenhum remorso, nossa sociedade convive bem com o assédio; com o abuso sexual das crianças – meninas e meninos; com o estupro coletivo das minas que saíram para passear de short curto; com o espancamento e assassinato da mulher que não tolerava mais os maus tratos do companheiro com quem dividia a mesma cama; com a humilhação sofrida por parte dos chefes e superiores que se julgam intelectualmente mais capazes; com o plano de carreira e salários desvalorizados; com demonização do aleitamento materno em vias públicas; etc.

A parte que nos cabe nesse latifúndio misógino brasileiro é a culpa pelos sofrimentos todos pelos quais passamos desde o nascimento até a morte. Somos tomadas como vítimas e algozes de nós mesmas, e sob nossos ombros carregamos o peso dos assassinos que não toleram as diferenças e pluralidades. Não há limites para o escárnio cotidiano, resposta de homens e de outras mulheres, ambos os filhos e as filhas de uma cultura que sempre nos identificou como um gênero de menor prestígio e qualidade, objeto de desejos e de maldades sem fim.

Mesmo – e, sobretudo?! – na esfera religiosa pesa sobre nós a misoginia que nos impede de sermos protagonistas de uma fé plural, de darmos o testemunho de um Deus capaz do ser humano criado na diferenciação e à sua imagem e semelhança. Nós os cristãos e as cristãs, no seguimento de Jesus Cristo e no processo de identificação a ele nos seus gestos e palavras, devemos nos comprometer na denúncia e luta contra a maldade que atenta contra a vida de tantas mulheres brasileiras e no mundo. Logicamente, as pautas em questão em nossas existências, singulares e coletivas, não surgirão da boa vontade de alguns ministros da Igreja e de outras pessoas de bem. Por isso, é urgente que elas sejam trazidas à discussão, na sociedade e na comunidade cristã, por aquelas que sabem o que vivenciamos como dor – também no interior das sacristias paroquiais –. E como a resistência é necessária, rejeitemos as flores: antecipação perfumada do crime que cobre os corpos de nossas irmãs todos os dias. Não quero flores.

*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com.

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