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O lucro não pode ser buscado 'a qualquer custo'.
A estátua Fearless Girl, 'Menina sem medo', olha desafiadora para a icônica 'Charging Bull', 'Touro de Wall Street', que representa o mercado financeiro. (Volkan Furuncu/ Anadolu Agency)
Por Élio Gasda*
Uma paisagem sinistra instaurou-se no planeta com a expansão do capitalismo em sua versão financeirizada-neoliberal. O capitalismo selvagem está de volta. Toda economia está dominada pelos sistemas financeiros.
Oeconomicae et pecuniariae quaestiones: considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro é o nome do documento divulgado dia 17 de maio, pelo Vaticano. Elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé e pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, acusa de forma contundente o neoliberalismo, condena seus males sociais e lamenta a impotência do poder político diante de interesses financeiros. O texto identifica os riscos, as injustiças e as imoralidades do sistema. Critica duramente a especulação financeira. O documento denuncia também a irresponsabilidade "sem rosto" do mercado e seu crescente distanciamento do bem comum e dos direitos humanos. O capitalismo financeirizado vem destruindo conquistas democráticas. O Brasil é prova irrefutável desse processo de destruição. A coalizão que governa o país, composta pela Rede Globo, Poder Judiciário e Sistema Financeiro levou a nação ao fundo do poço. Já são quase 30 milhões de desempregados.
O sistema financeiro, incapaz de se governar adequadamente, agrava a desigualdade e intensifica a exploração dos trabalhadores através da precarização e do desmonte dos direitos. Os produtos financeiros conhecidos como derivados são "uma espécie de bomba relógio, prontos a explodir a confiabilidade econômica e a contaminação dos mercados”. O sistema opera em um vazio ético, no qual o único imperativo é a maximização dos lucros. “Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Os interesses do mercado divinizado são transformados em regra absoluta” (Evangelii gaudium, 54).
O sistema financeiro não produz nada. As áreas produtivas se tornam um meio para os especuladores ganharem mais dinheiro, gerando profundo desequilíbrio: oito famílias detêm a metade de recursos financeiros do mundo, sendo que nenhuma delas produz nada. Criou-se uma classe inútil de rentistas parasitas. Em meio a níveis recordes de desigualdade, a riqueza dos bilionários alcançou um patamar sem precedentes de 9,2 trilhões de dólares, impulsionada por altas nos mercados de ações.
O capitalismo se move em função dos seus próprios interesses, alimentando a desigualdade social e perpetuando a “cultura do descarte” e da indiferença e “afeta tanto os seres humanos excluídos como as coisas que se convertem em lixo” (Laudato si, 22).
Os pobres sustentam o cassino financeiro global mantido pelo mecanismo perverso das offshore, que servem “de lavagem de dinheiro 'sujo' fruto de lucros ilícitos (roubo, fraude, corrupção, máfia, pilhagem de guerra...)”. Há trilhões escondidos em paraísos fiscais via offshore. Os sistemas bancários colaterais (shadow banking system) “determinam uma perda de controle por parte de diversas autoridades nacionais”. Grandes corporações “reduzem drasticamente sua carga fiscal transferindo os ganhos de um lugar para o outro, aos paraísos fiscais”. Estas atividades retiram recursos fundamentais da economia real e aprofundam a desigualdade. “A evasão fiscal representa uma abominável subtração de recursos da economia real e um dano para toda a sociedade civil”. Os países empobrecidos perdem US$ 100 bilhões por ano com a sonegação fiscal. Estima-se que uma riqueza de US$ 7,6 trilhões está escondida em paraísos fiscais. Só a África perde, todos os anos, US$ 14 bilhões em receitas fiscais.
O Brasil está entre os países com mais fluxos ilegais de capital do mundo. O maior esquema de corrupção é a sonegação de impostos dos milionários. O país soma mais de R$ 1,162 trilhão em débitos tributários. A maior parte dessa dívida pertence a 12 mil empresas. Os recursos financeiros, que deveriam financiar a redução da desigualdade não só não são aplicados produtivamente, como sequer pagam impostos, ao migrar para paraísos fiscais.
O lucro não pode ser buscado “a qualquer custo”. A verdadeira economia deve reconhecer que a pessoa humana é um "ser relacional" que deve ser "entendido pelo que a revelação cristã chama de “comunhão". Afirma o documento: "Nenhum ganho é realmente legítimo quando diminui o horizonte da promoção integral da pessoa humana, da destinação universal dos bens e da opção preferencial pelos pobres”. Soluções? Que a política não esteja a serviço das finanças, mais regras para o sistema financeiro, imposto mundial sobre transações offshore, mudanças estruturais para resolver o problema da dívida pública, reformar o sistema bancário e o mercado de renda fixa e controlar as transações eletrônicas.
Oeconomicae et pecuniariae quaestiones é um documento contundente, uma das críticas mais certeiras ao capitalismo contemporâneo. Podemos ser tentados a nos resignar e a pensar que nada podemos fazer. “Na realidade, cada um de nós pode fazer muito, especialmente se não fica sozinho. Numerosas associações provenientes da sociedade civil representam neste sentido uma reserva de consciência e de responsabilidade social das quais não podemos prescindir”, termina o documento.
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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