quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A fé em meio a graves escândalos na Igreja

  Miguel Pastorino | Ago 29, 2018
CANDLES
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Shutterstock-Alexander Narraina

Em que Igreja cremos? Em um clube de perfeitos ou em hospital de pecadores?
Em 1969, o então teólogo Joseph Ratzinger escreveu, em sua obra “Introdução ao Cristianismo”, um breve capítulo sobre a Igreja. Ele começa de um modo que nos parece muito atual:

“… Externemos o que hoje nos preocupa neste ponto. Se formos sinceros, seremos tentados a dizer que a Igreja não é nem santa, nem católica (…).Os séculos da história da Igreja estão tão repletos de humano fracasso, que podemos compreender a horrível visão de Dante, ao descrever a prostituta babilônica sentada na carruagem da Igreja, parecendo-nos também plausíveis as terríveis palavras do bispo de Paris, Guillaume d’Auvergne (século XIII), o qual acreditava que qualquer pessoa que visse o embrutecimento da Igreja, deveria ficar tomado de horror: ‘Não é mais esposa, mas um monstro de medonho aspecto e selvageria’ (…). A catolicidade da Igreja parece problemática. A túnica inconsútil do Senhor está dividida entre partidos litigantes, a Igreja única fracionada em muitas igrejas, das quais cada uma tem a pretensão, mais ou menos extremada, de ser a única a ter razão. Por isto a Igreja para muitos se tornou um real impedimento para a fé. Eles são capazes apenas de ver as aspirações humanas pelo poder, o espetáculo mesquinho daqueles membros seus que, afirmando serem os administradores do cristianismo oficial, parecem constituir o empecilho máximo ao verdadeiro espírito cristão”.

Dito isso com total clareza e dureza, estamos convencidos de que esses argumentos não podem ser refutados, e que essa percepção não somente está baseada em razões, mas também na experiência de corações partidos e feridos, que, agora, sofrem uma terrível decepção. E, partir deste ponto de vista, deste contrate entre o que se acredita e o que se percebe na realidade é que perguntamos: Por que, apesar de tudo, amamos a Igreja?

Igreja Santa? 
Dizer “Igreja santa” não significa afirmar que todos os seus membros são santos. Ratzinger defende que este sonho de uma igreja imaculada renasce em todas as épocas e que, de fato, as mais duras críticas à Igreja têm origem neste sonho irreal. Ele esclarece: 

“A santidade da Igreja consiste no poder pelo qual Deus opera a santidade nela, dentro da pecaminosidade humana. É um dom de Deus, uma graça, que permanece apesar da infidelidade humana. É expressão do amor de Deus que não se deixa vencer pela incapacidade do homem, mas, apesar de tudo, sempre volta a mostrar-se-lhe bondoso, a recebê-lo exatamente como pecador, a voltar-se para o homem, a santificá-lo, a amá-lo”. 

Assim como qualquer dom, a santidade não depende do mérito dos crentes. A santidade que permanece na Igreja é a de Cristo, não a nossa. 

Para Ratzinger, a paradoxal imagem da justaposição entre a santidade de Cristo e a infidelidade humana é a dramática figura da graça neste mundo, pela qual se faz visível o amor gratuito e incondicional de Deus, que tanto ontem quanto hoje se senta para comer na mesa dos pecadores. 

O sonho de um mundo puro 
A ideia de que a Igreja não se mistura com o pecado é um pensamento simplista e dualista, que pretende tecer uma imagem ideal e aristocrática, mas não real. Ratzinger lembra como os contemporâneos de Cristo se escandalizavam porque Ele não era um fogo capaz de destruir os pecadores:

“Sua santidade revelava-se precisamente como procura dos pecadores que Jesus atraía para perto de si; como um misturar-se até o extremo de ele mesmo se ter tornado ‘pecado’, carregando a maldição da lei em seu suplício (…). Jesus atraiu a si o pecado e tornou-o parte dele, revelando deste modo o que é a autêntica ‘santidade’: não isolamento, não julgamento, mas amor salvador.”

As perguntas que surgem deste modo de ver as coisas são estremecedoras e cheias de esperança: 

“Não é a Igreja a mera continuação desse divino compromisso com a miséria humana; não é a Igreja a mera continuação da comunidade da mesa de Jesus com os pecadores, do seu misturar-se com a miséria do pecado, de modo a dar a impressão de naufragar nele? Na pecadora santidade da Igreja, em contraste com a humana expectativa dos puros, não se revela a verdadeira santidade de Deus que é amor, amor que não se conserva em nobre distância diante dos puros intocáveis, mas se mistura com a sujeira do mundo para vencê-la? Nesta perspectiva a santidade da Igreja poderia ser outra coisa que o mútuo suportar-se que, naturalmente, flui para todos do fato de Cristo a todos sustentar?”

Carregarmos uns aos outos, pois Ele tem nos carregado 
Ratzinger confessa, em seu tom sempre lúcido e transparente, que a santidade quase imperceptível da Igreja tem algo de consolador. Porque nós certamente iríamos nos desanimar diante de uma santidade imaculada, judicial e arrasadora que não abraçasse a fragilidade humana e não oferecesse sempre o perdão a quem se arrepende de coração. De fato, todos teríamos que sair da Igreja, caso ela fosse uma comunidade dos que merecem o prêmio da perfeição.  

Quem é consciente de que tem a necessidade de ser apoiado pelos outros, não poderá se negar a carregar os seus irmãos. O único consolo que a comunidade cristã pode oferecer é apoiar o próximo, assim como ela mesma é apoiada. 

O que realmente importa aos fiéis 
As visões reducionistas sobre a Igreja não levam em conta a visão que ela tem de si mesma nem seu centro, que é Jesus Cristo. Ela não é uma instituição em que o mais importante é a sua organização ou os objetivos políticos, “mas o consolo da palavra e dos sacramentos, que se conservam em dias bons e fatídicos”. 

“Os crentes autênticos não dão excessiva importância à luta pela reorganização de formas eclesiásticas. Vivem do que a Igreja sempre é. E querendo saber o que é a Igreja, basta dirigir-se a eles. Porquanto a Igreja geralmente está não onde se organiza, reforma, rege, mas nos que crêem singelamente, recebendo dela a dádiva da fé, que se lhes torna fonte de vida. Só quem experimentou de que modo, por cima das vicissitudes dos seus ministros e das suas formas, a Igreja sustenta os homens, lhes dá pátria e esperança, uma pátria que é esperança: caminho para a vida eterna – só quem o experimentou, sabe o que é Igreja em todos os tempos.”

Para Ratzinger, a Igreja vive da luta entre o pecado de seus membros e a santidade do Cristo que a habita. Mas esta será uma luta útil somente se for usada para amor real e eficaz. Uma Igreja de portas fechadas destrói os que estão dentro dela. 

Ainda de acordo com Ratzinger, é uma ilusão crer que, isolando-se do mundo podemos melhorá-lo, assim como é uma ilusão acreditar em uma “igreja de santos”, pois o que existe é uma “Igreja santa”- santa porque é de Cristo, não nossa. 

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