quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Bondade demais oprime

domtotal.com
Algumas pessoas não se deixam amar na gratuidade, precisam fazer algo para serem amadas porque, no seu íntimo, não se creem merecedoras, dado aquilo que rejeitam em si.
Bel Kowarick, Debora Lamm e Maria Flor, na peça 'A ponte'.
Bel Kowarick, Debora Lamm e Maria Flor, na peça 'A ponte'. (Ismael Monticelli/Divulgação CCBB)
Por Gilmar Pereira

Você já deve ter notado que há pessoas terrivelmente amáveis. Elas são tão ternas e ávidas em servir que, se sua ajuda for dispensada, tornar-se-ão verdadeiros monstros feridos por sua rejeição ao amor que querem devotar. Fuja dessa gente! Do contrário, vão lhe encher de carinho até lhe sufocar e você morrer de tanto amor!

Talvez uma descrição assim lhe lembre de uma personagem do desenho Tiny Toon Adventures da Warner Bros., a Felícia (Elmyra Duff, no original em inglês). A garota da animação gosta tanto de animais que quer pega-los, abraça-los, acaricia-los, aperta-los, até morrer de tanto amor, como ela mesma diz. Essa obsessão é caricata no desenho, contudo, na vida real se mostra bem sutil de modo a dominar os distraídos.

Tudo começa assim: Há uma pessoa que tem dificuldade em reconhecer suas próprias necessidades. Ela não consegue olhar para si porque não suporta a ideia do que pode encontrar, talvez intuíndo aquilo que rejeita em si mesma. Por essa autonegação, busca a acolhida e o carinho alheio. E de que forma? Justamente por não aceitar seus limites, volta-se para os problemas dos outros e quer lhes servir. Desse modo, cria uma imagem falsa de si, como pessoa que não precisa de ajuda, que está sempre bem, e ainda se mostra como boa e fraterna para socorrer as necessidades alheias, recebendo nesse reconhecimento sua compensação afetiva.

Note a prisão que a pessoa cria para si mesma. Ela se torna dependente do reconhecimento por outros de sua bondade. Precisa ser amada, mas não se deixa amar de verdade. Confundindo amor com comércio, acaba vivendo para agradar e servir em troca de reconhecimento e afeto. Pessoas assim não se deixam amar na gratuidade, precisam fazer algo para serem amadas porque, no seu íntimo, não se creem merecedoras, dado aquilo que rejeitam em si.

Em contraposição, quando alguém não se deixa amar e servir, a pessoa outrora dócil e gentil se torna agressiva. Seu amor é uma espécie de manipulação para prender os outros juntos de si. Quem poderia fugir ou rejeitar quem só quer seu bem e faz de tudo para sua felicidade? Ora, não corresponder ao controle sutil de pessoa tão “generosa” significa para ela que o outro não a considera boa o suficiente, que não gosta dela, que é sua inimiga.

A imagem externa do ajudador é a de alguém seguro e que tudo pode, sabe e faz. Sempre pronto em servir, precisa ser reconhecido em seu sacrifício e amor. E tal dependência se torna agressividade quando não atendido ou visto por aquele a quem se dedicou. Isso se mostra, às vezes, como ciúme, cobrando o amor dado, ou na tentativa de destruir quem possa ser seu concorrente, quando outro alguém conquista as atenções que antes eram suas. Desse modo, o mesmo que se apresenta como carinhoso e servil pode se mostrar manipulador, capaz de jogar uma pessoa contra outra ou chantagista emocional, tentando gerar culpa em quem quer controlar.

Ora, se há manipulação e controle, já não é amor, mas opressão. Em alguma medida, é possível que qualquer um caia nisso, mas é urgente não basear uma relação no aprisionamento afetivo. Para isso, cabe a quem está na dependência do reconhecimento alheio um novo olhar sobre si, entrar numa relação de autovalorização e estima por si mesmo.

Somente pessoas livres liberam as outras para seguirem seus próprios caminhos. Quem quer prender alguém junto de si é escravo do afeto alheio antes mesmo daquele a quem quer escravizar. Paradoxamente, torna-se prisioneiro por fugir de si, por não encontrar lugar em quem se é. Daí cai no afã de viver a vida alheia, já que não pode viver a própria. Sem ter lugar, o interior se torna eterna inquietude, o que transborda nas relações que constrói (ou destrói), sempre marcadas por conflitos, jogos e rupturas. Mas não vai adiantar dizer nada para alguém assim, elas creem que são boas demais. O problema é sempre o outro.

A ponte

Rever valores e crenças para reconstruir relações fracassadas não é tarefa fácil. Esse é o tema da peça A ponte, que estreia no CCBB-BH, uma narrativa de três irmãs separadas pela vida, que são obrigadas a se reunir para enfrentar a morte iminente de sua mãe. Louise, a mais jovem, apaixonada por uma série de TV, a quem não interessa quase nenhum diálogo para fora do mundo virtual. Teresa, a mais velha, uma freira que se isolou da família em um retiro religioso. E Agnes, a irmã do meio, uma atriz falida que deixou sua cidade natal. Neste reencontro, as três vão acabar revendo seus valores, crenças e diferenças em busca da possível reconstrução de uma célula familiar há muito tempo fragmentada.

Data: 04 a 23/12/2018 - Seg | Sex | Sab | Dom | 20:00. (No dia 23 de dezembro, a sessão acontecerá às 19h).

Informações: CCBB-BH

Ingressos: Eventim

Gilmar Pereira
Gilmar Pereira é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP; bacharel e licenciado em Filosofia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CESJF); bacharel em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Também possui formação em Fotografia pelo SESI-MG/ Studio 3 Escola de Fotografia. É responsável pela editoria de Religião do portal Dom Total, onde também é colunista. Atua como palestrante há 18 anos, com grande experiência no campo religioso, tem ministrado diversos minicursos nas áreas de Filosofia, Teologia e Comunicação. Possui experiência como professor de Filosofia e Sociologia e como mestre de cerimônia. Leciona oratória na Dom Helder Escola de Direito e ministra a disciplina ''A comunicação como evento teológico'' na especialização ''Desafios para a Igreja na Era Digital''.

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