segunda-feira, 16 de março de 2020

Confinada na Itália

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Impressões de quem foi pega de surpresa por um exílio involuntário e compulsório


O isolamento deixou as ruas de Crocetta, no Vêneto, com ar de abandono e desolação.
O isolamento deixou as ruas de Crocetta, no Vêneto, com ar de abandono e desolação.
Rosangela Petta*
E aqui estou, numa casa ampla e assobradada, cuja varanda lateral dá vista para os cocurutos nevados do Monte Cesen que se eleva a 1.570 metros no extremo norte da região italiana do Vêneto. Neste fim de inverno, as primeiras florezinhas silvestres, brancas, amarelas e azuis, já começaram a brotar nos canteiros à beira das estradas, mas o vento ainda é gelado. Os parreirais enfileirados espalham-se por toda a parte, entremeados aqui e ali por pequenos campos de feno. É uma região de agroturismo, com salames e ricota artesanais, e a principal produção concentra-se nos vinhos do tipo prosecco.
A cidade chama-se Crocetta del Montello. Cortada por um ribeirão que escapa da margem direita do rio Piave, segue o padrão da maioria das comunas (ou municípios) de todo o país: um punhado de gente num pequeno espaço. Oficialmente, nos 26 quilômetros quadrados de Crocetta vivem cerca de seis mil pessoas, embora quase não se veja o ir e vir nas calçadas em dias de semana. Tudo aqui é muito limpo, jardins bem cuidados, nem uma única pichação. Com três linhas que fazem ligação com as comunas vizinhas, os ônibus passam pela rua principal a cada meia hora, em média, e só até o final da tarde. A estação de trem mais próxima fica a dois quilômetros, na cidadela de Cornuda (sim, o nome é esse). Há meia dúzia de restaurantes, uma farmácia, uma agência bancária, o posto do correio e um supermercado — quem quiser pesquisar preços precisa se deslocar pelos arredores, como Montebelluna, Pederobba, Cornuda ou mesmo Treviso, capital da província veneziana de mesmo nome.
“A viagem a Crocetta, subitamente, virou outra coisa que ainda não sei como se chama”.“A viagem a Crocetta, subitamente, virou outra coisa que ainda não sei como se chama”.
Mas Crocetta não é apenas um entroncamento ligeiramente urbano das ricas fazendas de uva. Ela faz parte de um conjunto de comunas do nordeste da Itália às quais, todo mês, chegam dezenas de brasileiros para fazer a cidadania italiana. Quer dizer, chegavam: desde a segunda-feira 9 de março, por determinação governamental, ninguém entra e ninguém sai de qualquer província italiana. A medida, para tentar conter a expansão do Convid-19, foi tomada na noite do sábado anterior: como se sabe, rapidamente a Itália subiu ao topo das estatísticas da União Europeia sobre contaminação e óbitos por causa do novo coronavírus. As exceções para deslocamento contemplam apenas profissionais de saúde e quem precisa trabalhar fora de casa — mesmo assim, depois de assinar um documento, na delegacia, responsabilizando-se caso seja ligado, de alguma maneira, a um caso de contaminação, sob penalizações como multa e processo pelo Código Penal.

Se Crocetta já tinha um way of life modorrento, agora trancou-se em casa. O comércio só funciona até as 18h (em algumas lojas, só entra uma pessoa por vez) e, uma vez lá dentro, clientes e funcionários são obrigados a manter distância mínima de um metro entre si. Embora aqui não haja casos de contaminação, quem foi ao supermercado para estocar comida vestiu máscara e luvas descartáveis. Forças policiais fazem barreiras nas estradas. O serviço de trens orienta o embarque apenas em caso de extrema necessidade, e com o documento de autorresponsabilidade. Não posso sequer conhecer os dois museus de Crocetta, ambos fechados pelo decreto: o da Fundação Italiana de Tipografia (a Tipoteca) e o ‘900 (ou Novecento), com registros do trauma da cidade com a Primeira Guerra Mundial. A recomendação é de até “evitar” sair de casa.
Veneza às moscas: “Ninguém entra e ninguém sai de qualquer província italiana”.Veneza às moscas: “Ninguém entra e ninguém sai de qualquer província italiana”.
Até onde me lembro, a única vez em que fui impedida de ir e vir ocorreu em 1975, quando forças policiais cercaram a Cidade Universitária da Universidade de São Paulo no dia da missa ecumênica pelo assassinato de Wladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI. Wlado era professor na faculdade de Jornalismo em que eu estudava e só fomos autorizados a sair do campus à noitinha, quando a missa-protesto na Catedral da Sé já havia terminado. Mas não há comparação. Em 1975, fui impedida de me locomover pela repressão da ditadura militar. Agora, estou proibida de sair Itália afora porque querem me proteger de uma pandemia.

Este exílio inesperado e compulsório não interrompeu apenas os planos de ver os afrescos de Giotto em Pádua, perambular por Verona, dar uma esticada até Parma e Asti. A viagem, há tanto tempo planejada, subitamente se transformou em outra coisa que ainda não sei como se chama, mas mistura sensações que contém gotas de incerteza e uma boa colherada de solidão. Aquela paisagem de calendário suíço congelou-se como numa fotografia. O silêncio parece ter ficado mais denso, trespassado somente por um ou outro bando de pássaros, pelas manobras de rotina dos caças de uma base aérea nas proximidades e pelo sino da igreja que marca as horas. Aliás, só agora (não por acaso) comecei a prestar atenção às badaladas.
Somos cinco pessoas na tal casa ampla e assobradada, quatro brasileiros e uma moça russa. Com o confinamento forçado até dia 3 de abril, faço o possível para não me ver numa versão à carbonara da Casa do BBB, enfrento a reality com leitura filmes de streaming, exercícios de ginástica e, claro, papos pelo whats. Giro no ciclo de cozinhar, comer, cozinhar, comer — às vezes em grupo, mas quase sempre sozinha. E os longos momentos de Fumando espero, como cantava Sarita Montiel.
“Estou proibida de viajar Itália afora porque querem me proteger”“Estou proibida de viajar Itália afora porque querem me proteger”
O esforço diário para não me deixar levar pela paranoia envolve mais que lavar as mãos a todo momento e passar álcool gel em maçanetas, objetos de uso comunitário e até o botão de descarga do banheiro. Não sei o que os outros quatro hóspedes estão sentindo bem lá no fundo, pois os papos aqui desenrolam-se na superficialidade da cortesia entre estranhos: falamos do clima, das últimas notícias sobre o coronavírus na Itália e no mundo, sobre a preocupação de nossos amigos e parentes, sobre o que vamos comer e beber daqui a pouco, até trocamos receitas. Na maior parte do tempo, cada qual se aninha num canto, com seu smartphone. Com um pouco de paciência, dá para interromper inevitáveis comentários tortos sobre chineses (felizmente, raros) e de exageros próprios de quem se informa pelo Facebook. Minha maior preocupação é com os desdobramentos econômicos e sociais, pois está clara a ameaça de recessão neste 2020, com aumento do desemprego e um abatimento de ânimo de dimensão global.

No mais, tomo este confinamento como um intervalo forçado para reflexão. Sem ocupar o tempo, o corpo e a mente na eterna obrigação de “fazer alguma coisa”, encontrei uma oportunidade para pensar mais demoradamente sobre a imprevisibilidade da vida. Lembro do verso de Fernando Pessoa, sobre a imprecisão que é viver, e me pego examinando o exercício da vontade, sempre tão sôfrega e exigente, para redimensionar os limites que o mundo nos coloca. Não temos controle sobre muita coisa. Ninguém tem. Vem a surpresa, as coisas mudam. Será que essa sacudida planetária fará ao menos uma parcela da humanidade rever políticas de meio ambiente, saúde, justiça social, informação séria, comércio internacional?
Dos grandes players políticos e financeiros não se pode esperar muito. Mas, talvez, outros milhões de isolados como eu possam repensar as prioridades e, num fiozinho de otimismo, renascer renovados dessa crise.
Isolados do mundo, italianos cantam 'Bella Ciao' das janelas e varandas


*Rosangela Petta, paulistana, é jornalista, consultora em comunicação e escritora. Em mais de 40 anos de imprensa, trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, revista IstoÉ e TV Cultura de São Paulo, entre outras. Foi professora de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero.

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