Vários legados de Santo Óscar Romero refletem sua identidade,
Qual Óscar Romero é homenageado? O santo? O humilde padre ou o católico martirizado?
Essa pintura de Santo Óscar Romero fica na entrada da casa de Romero, agora um museu, nos terrenos do Hospital da Divina Providência em San Salvador. (Chris Herlinger/NCR)
Chris Herlinger
National Catholic Reporter
Quando os salvadorenhos comemorarem o 40º aniversário do assassinato de Óscar Romero em 24 de março, espera-se que saiam em procissões, participem da missa, ouçam homilias e reflitam pública e privadamente sobre um homem que veio definir sua igreja e sua nação.
Mas em um país onde a figura de Romero está aparentemente em todas partes – em igrejas, esquinas, lojas e salas de estar – uma pergunta ainda fica sem resposta: qual Óscar Romero está sendo homenageado? O santo? O humilde padre? O católico martirizado? Um homem sepultado na história em um determinado momento e local, ou um exemplo vivo de um país que ainda luta com o legado e os efeitos de uma guerra civil de uma década?
Essas perguntas vieram à tona durante uma tarefa que me levou a El Salvador, no final do verão de 2019, para relatar o trabalho de irmãs católicas, particularmente aquelas que trabalham em comunidades onde a violência relacionada a gangues é predominante.
De maneira reveladora, entre as visitas a esses bairros, eu sempre voltava a um ponto de peregrinação: os terrenos do Hospital da Divina Providência, onde Romero morava e onde celebrou sua última missa em 24 de março de 1980. O hospital é administrado pelas Carmelitas Missionárias de Santa Teresa.
Um daqueles religiosos com quem falei foi o Padre Carmelita Paul Henson, de Los Angeles. Encontramo-nos a poucos metros do altar, onde Romero foi morto por um pistoleiro que, do lado de fora da capela, atirou no santo com um rifle.
Henson acha que o legado de Romero continua no ministério do Papa Francisco – um ministério dedicado a enfrentar "o sofrimento dos pobres", como os da fronteira EUA-México. "A teologia [de Romero] sempre foi ‘Deus em primeiro lugar’", disse Henson, levando o povo a refletir e questionar a atual crise das fronteiras "absolutas".
Alguns dias depois, na mesma capela, conheci a Irmã Carmelita Julia García, atual administradora do hospital. Ela tinha 28 anos quando Romero foi assassinado e o encontrava ocasionalmente. Julia lembra de um homem modesto e quieto que buscava a paz, mas sempre procurando soluções práticas. Com o assassinato de Romero, "as pessoas se sentiam sozinhas e desprotegidas porque ninguém as defendia".
"Ele viveu a palavra de Deus e a fez reviver essa palavra", disse ela, acrescentando que Romero, como Jesus, ofereceu sua vida como sacrifício àqueles que amava. Mas, ao mesmo tempo, García acredita que Romero não "levantou uma bandeira política. Sua bandeira foi o Evangelho".
No momento em que as pessoas em El Salvador estavam sendo mortas "à toa", a postura profética de Romero contra a violência – e seu chamado específico no dia anterior ao seu assassinato, para que os militares parassem os massacres – foi o que acabou causando sua morte, disse García.
"Ele era como uma pedra no sapato", disse a irmã, observando que até hoje nem todos os católicos salvadorenhos acreditam que Romero é verdadeiramente santo. "Mas as pessoas com consciência social acreditam que ele era sim, um santo", disse ela.
Mesmo assim, aqueles que resistiram à adoração de Romero ainda têm o poder de semear intrigas.
Na minha primeira manhã no país, acompanhei a irmã salvadorenha Hilda Alfaro, membro da congregação do Anjo da Guarda e Raquel Orellana, líder do programa do Movimento das Cores em San Salvador, em uma visita ao terreno do hospital. (O Movimento das Cores apoia o trabalho das irmãs católicas nas comunidades salvadorenhas que enfrentam desafios como a violência de gangues. É uma iniciativa conjunta da Alight, anteriormente o Comitê Americano de Refugiados, e da Sisters Rising Worldwide, ambas organizações de Minnesota).
Ao atravessarmos a pequena residência que foi transformada em museu, Alfaro e Orellana notaram que os seguidores do falecido líder político de direita Roberto D'Aubuisson, que uma comissão de verdade das Nações Unidas nomeou como aquele que ordenou o assassinato de Romero, "ainda acreditam que ele tinha o direito de ordenar a morte", disse Alfaro. "Elas ainda acreditam que [Romero] era um terrorista", acrescentou Orellana.
Orellana lembrou que esses comentários borbulhavam um pouco no processo de canonização de Romero. Alguns da direita disseram que a esquerda salvadorenha queria que Romero fosse morto "para que pudessem ter um santo, um mártir".
Tais comentários foram dolorosos, disse ela, mas mostraram que "o mal ainda está vivo na consciência de muitas pessoas", disse ela, "para justificar uma coisa horrível que aconteceu e transformá-la em uma coisa boa".
Não é fácil encontrar pessoas dispostas a falar publicamente sobre esse tema. Sergio Leonel Estrada Massis, um empresário salvadorenho que trabalhou com jornalistas norte-americanos durante a guerra como correspondente jornalístico na década de 1980 e que me ajudou com traduções e arranjos durante minha missão, perguntou a um conhecido se estaria disposto a ser entrevistado. O homem pensou sobre isso, mas acabou optando por rejeitar o convite, dizendo que suas palavras podem ser mal compreendidas ou mal interpretadas.
Estrada me disse que é uma reação comum na ala direita – afinal, quando as notícias se espalharam pelo assassinato de Romero, fogos de artifício comemorativos explodiram em alguns dos bairros mais ricos de San Salvador. Os ricos chamavam Romero de comunista e acreditavam que deveria "ter atendido apenas as preocupações pastorais", disse Estrada.
No entanto, Estrada observou que Romero nunca adotou totalmente a teologia da libertação, também criticou os guerrilheiros de esquerda por seus assassinatos durante a guerra. "Ele também era uma pedra no sapato da esquerda", disse Estrada.
Marisa de Martínez, irmã de D'Aubuisson, me disse em uma entrevista: "Existe um setor que ainda está em uma bolha e não aceita Romero".
Martínez reverencia Romero e seu trabalho como ativista social continua seu legado. "Eles o rejeitam. Eles dizem: 'Era comunista, como os jesuítas'", referindo-se aos padres jesuítas cujos assassinatos por uma unidade militar salvadorenha em 1989 foram inicialmente justificados sob o pretexto de segurança nacional. "Eles dizem que essas mortes foram justificadas – e dizem a mesma coisa sobre Romero".
Mas a extensão do sentimento anti-Romero é difícil de avaliar. "Romero falou", disse Martínez sobre a opinião geral do público sobre Romero "e o assunto acabou". Em outras palavras, a preeminência de Romero não está em questão.
No entanto, nem sempre foi assim. No meio da guerra dos anos 80 e até boa parte dos anos 90, a igreja e o próprio país não sabiam como comemorar a memória de Romero. "Por muitos anos a igreja não falou sobre ele", lembrou.
É provável que o debate sobre o legado de Romero nunca seja totalmente resolvido.
Orellana lembra uma reação do Facebook a um post que ela fez quando Romero foi canonizado em Roma em 2018. “’Eu não sei por que você se alegra com essa pessoa’”, Orellana lembrou a reação dizendo. "Ele era apenas uma pessoa".
O próprio Romero, conhecido por sua humildade, pode não ter discordado dessa avaliação - sua antiga residência no hospital é um modelo de simplicidade e frugalidade.
Mas Orellana - cujos pais se casaram com Romero em 1979 - acredita que sua conquista é notável, mas não exclusivamente sua. É um pedaço de um país martirizado, mas orgulhoso. "Para mim, ele é um santo. Ele fez do comum algo extraordinário. Ele falou a verdade e, com isso, mudou vidas e fez uma transformação social".
Se Romero estivesse vivo hoje, perguntei para Orellana, o que ele diria sobre o atual contexto salvadorenho? "Ele via os membros das gangues como seres humanos destinados a ser amados e o que eles estão fazendo [ao cometer crimes] é devido à falta de amor em seus corações", disse ela. "Acho que Romero diria: 'Vocês são pessoas que precisam de amor, mas precisam parar de magoar e matar pessoas'".
Ao mesmo tempo, Romero provavelmente culparia as estruturas da sociedade salvadorenha que tornaram as gangues tão relevantes, disse ela. "Você precisa de educação, de saúde, de empregos". Em outras palavras, Orellana disse, Romero apontava o seguinte: "As pessoas precisam de dignidade".
Romero certamente afirmou esse ditado. García lembra que, uma vez no café da manhã, Romero e a superiora das irmãs, uma religiosa mexicana, tiveram uma grande discussão – sobre o que exatamente, García não se lembra. Mas foi um momento desagradável e os dois deixaram a mesa do café com raiva.
Às 7 horas da noite, naquela mesma noite, quando as irmãs se preparavam para jantar, a campainha tocou; Romero disse que queria ver falar com o superior. "Peço perdão", disse ele à mulher. "Eu não posso ir dormir esta noite se ainda estiver com raiva".
García relembra a história com prazer silencioso. E há uma boa razão para isso. "É importante para nós", disse ela, "continuar seu legado".
Publicado originalmente em National Catholic Reporter.
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