Caso projeto autoritário naufrague, opção por Miami será natural
Bolsonaro construiu pontes, caso tenha que responder por crimes de responsabilidade
Marco Piva*
Assim que venceu as eleições e o diplomata Ernesto Araújo foi indicado para assumir o Ministério das Relações Exteriores, mesmo sem ter à época o cargo de embaixador, Jair Bolsonaro iniciou uma ofensiva para conquistar a confiança de Donald Trump. Em sua primeira viagem aos Estados Unidos, reverenciou o presidente norte-americano com uma continência e usou o boné com a inscrição “America First”.
Na sequência, em manobra política arriscada, buscou garantir a indicação de seu filho Eduardo Bolsonaro para a embaixada brasileira em Washington. O movimento não prosperou, apesar de um suposto apoio da Casa Branca.
Na área econômica, os atritos com a China, maior parceiro comercial do Brasil, deixaram claro que a preferência seria a ampliação dos negócios com os EUA. Assim, por exemplo, os produtores de trigo norte-americanos viram com satisfação quando Bolsonaro aumentou a cota de importação brasileira para 750 mil toneladas, ainda que tal medida tenha prejudicado os produtores do Rio Grande do Sul.
E recentemente, em mais uma arriscada cartada de alinhamento comercial, o governo anunciou uma parceria com a norte-americana Cisco para a implantação da tecnologia 5G no Brasil. A notícia foi uma surpresa para o setor de telecomunicações brasileiro porque não houve debate anterior. Ao anunciar a parceria, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, não apresentou sequer um esboço de projeto. Ele simplesmente afirmou que os Estados Unidos serão o nosso aliado preferencial numa das disputas mais estratégicas do mundo e onde o grande adversário de Trump é a China, cuja empresa Huawei desponta como grande competidora.
Na mesma linha de abertura ampla, geral e irrestrita, foi abolida a obrigatoriedade de visto para a entrada de norte-americanos no Brasil, sem a devida reciprocidade, ou seja, os brasileiros continuam precisando de visto para ingressar nos Estados Unidos, com as mesmas dificuldades de sempre.
Na área militar e de segurança, os laços se estreitaram quando Trump decidiu ressuscitar a 4ª Frota do Atlântico e convidou um militar brasileiro para fazer parte do grupo de oficiais de comando da esquadra. Por outro lado, a presença de agentes do FBI no Brasil aumentou, bem como os convênios formais e informais entre o Departamento de Justiça e o Ministério da Justiça chefiado por Sergio Moro. O alinhamento brasileiro com a estratégia norte-americana para sufocar os governos da Venezuela e de Cuba mostrou que, apesar da ressalva de setores militares, Bolsonaro decidiu pela opção mais perigosa do tabuleiro geopolítico.
Quem poderia receber o exilado Bolsonaro e tratá-lo de forma segura?
A indicação de Washington para que o Brasil passe a integrar a OCDE foi bastante comemorada pelo mercado, mas na prática as exigências ainda estão longe de serem cumpridas. Em contrapartida, o acordo Mercosul-União Europeia, que traria ampliação de investimentos e maior liberdade de comércio, não saiu do papel.
Desde que assumiu o governo, Bolsonaro tem buscado agradar Donald Trump, numa postura bastante criticada por diferentes ex-chanceleres brasileiros e até mesmo no Itamaraty. A última visita do presidente aos Estados Unidos, bem no início da pandemia, em março, e em especial a sua presença numa solenidade absolutamente trivial em Miami, levantou a hipótese de que tamanha proximidade possa esconder objetivos bem particulares.
A decisão de Trump de impedir o ingresso em território norte-americano de pessoas que tenham passado pelo Brasil e mesmo a entrada de brasileiros nos Estados Unidos foi saudada pelo Itamaraty como uma medida “técnica”. Ora, em uma situação normal, a recíproca valeria. Afinal, o maior índice de contaminação da Covid-19 está em solo norte-americano.
Fontes ligadas ao Partido Democrata levantaram a hipótese de que tamanha necessidade de mostrar alinhamento ideológico revela um plano não declarado publicamente, ou seja, Bolsonaro está construindo as condições para um pedido de asilo caso seu projeto autoritário naufrague e ele tenha que responder à Justiça por eventuais crimes de responsabilidade.
Nessa situação, qual país poderia receber um Bolsonaro condenado e tratá-lo de forma segura se não os Estados Unidos? E qual seria o lugar em território norte-americano mais indicado para Bolsonaro e sua família se instalarem se não em Miami? É em Miami onde historicamente estão concentradas e articuladas as forças que combatem os governos de Cuba e da Venezuela, inclusive com o uso da violência.
Bolsonaro demonstra muito amor pelos Estados Unidos, mas sua paixão mesmo deve ser por Miami, onde vive uma grande comunidade brasileira. Ali, suas ideias retrogradas prosperariam com facilidade a ponto de obter uma base de apoio para articular uma eventual volta ao Brasil. Afinal, aventuras e descompromisso com a democracia são coisas que não faltam ao presidente brasileiro.
Marco Piva é jornalista, diretor de redação do canal youtube 'O Planeta Azul' e apresentador do programa 'Brasil Latino' na Rádio USP.
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