segunda-feira, 8 de junho de 2020

Jesus presente na Eucaristia: reflexões sobre a 'consagração'

Não se chega à mesa da Eucaristia sem se passar pela mesa da Palavra
O erguimento do pão e do cálice, nesse momento, é uma herança do rito anterior ao Concílio 
O erguimento do pão e do cálice, nesse momento, é uma herança do rito anterior ao Concílio Vaticano II, o chamado rito de Pio V ou Missa Tridentina
O erguimento do pão e do cálice, nesse momento, é uma herança do rito anterior ao Concílio Vaticano II, o chamado rito de Pio V ou Missa Tridentina (Josh Applegate / Unsplash)

Felipe Magalhães Francisco*

Jesus está realmente presente na Eucaristia, confessa a fé cristã católica. Como temos visto ao longo de nossos últimos artigos, essa compreensão não deve ser absolutizada, pelo risco da idolatria. O pão e o vinho eucaristizados são, para os que creem, Corpo e Sangue de Cristo, mas que não têm fim em si mesmos: destinam-se à comunhão dos fiéis, a fim de que eles se tornem Corpo de Cristo. 

Reze conosco em Meu dia com Deus
Tomamos parte na vida do Senhor, sacramentalmente, ao participar das mesas da Palavra e da Eucaristia. Essa compreensão é importante porque nos educa para a consciência de que, mesmo que aquilo que corriqueiramente é chamado de “consagração” seja o ponto alto da celebração eucarística, ele não deve ser visto como o mais importante, sem o prejuízo de se desvalorizar a Palavra, que também é Cristo, e a própria assembleia dos fiéis.

O que costumeiramente se passou a chamar de “consagração” corresponde, na Oração Eucarística, à narrativa da instituição da Eucaristia, que são palavras do próprio Jesus, conservadas pelos evangelhos sinópticos. No momento imediatamente anterior à narrativa, na chamada epiclese sobre as oblatas (pedido do envio do Espírito sobre o pão e o vinho), os fiéis costumam se ajoelhar, segundo a piedade, até o momento da aclamação anamnética (“Eis o mistério da fé”, seguido da resposta). A narrativa da instituição é feita pelo presidente, acompanhada de alguns gestos que remontam ao Cristo na última Ceia, mas não como uma repetição teatralizada, como se pode ver em alguns casos.

O erguimento do pão e do cálice, nesse momento, é uma herança do rito anterior ao Concílio Vaticano II, o chamado rito de Pio V ou Missa Tridentina. Quando, da celebração em latim, o único momento de participação e entendimento por parte dos fiéis era na ocasião da elevação da hóstia e do cálice, tal rito era o que inseria os fiéis na celebração. O rito permanece no atual Missal, fruto da piedade em se reconhecer a presença real de Cristo nas espécies consagradas. 

Por um lado, tanto a narrativa da instituição como a elevação da hóstia e do cálice, são elementos importantes para valorizar o ponto alto da celebração. Por outro lado, carecemos de uma catequese que nos faça romper com más compreensões sobre os seus significados.

Chamar o ponto alto da prece eucarística de “consagração” é um resquício da teologia escolástica, quando se buscava distinguir, com exatidão racionalizante, o momento específico em que o pão e o vinho se tornavam Corpo e Sangue de Cristo. Convencionou-se, teologicamente, a atribuir a primeira epiclese (do rito latino, importa destacar) mais a narrativa da instituição como sendo o momento exato em que haveria a transformação sacramental. 

Todo esse caminho fez com que se criasse um escrúpulo piedoso para com esse momento da celebração, e uma consequente desvalorização dos outros momentos, sobretudo da Liturgia da Palavra. O Concílio Vaticano II se atentou a isso e, em sua reforma litúrgica, chama a atenção para a igualdade das duas mesas: a da Palavra e da Eucaristia, nas quais o Cristo se faz verdadeiramente presente e se doa como alimento.

Atribuir ao momento da narrativa da instituição da eucaristia à “consagração” é teologicamente problemático, quando tomamos a consciência de que essa narrativa não estava presente em todas as Orações Eucarísticas da Antiguidade. Uma análise crítica das Orações Eucarísticas leva à compreensão de que essa narrativa é um enxerto feito nas antigas anáforas. Um enxerto teologicamente justificável: uma vez que o Cristo nos mandou fazer como ele na última ceia, citar suas palavras é um reforço a mais na oração que dirigimos ao Pai. Contudo, se a presença de Cristo na eucaristia estivesse restrita à narrativa da instituição, o que se diria a respeito das antigas anáforas, isto é, orações eucarísticas, que não a continham: aqueles cristãos e cristãs celebravam um teatro?

A resposta é, teologicamente, não! Tanto é que ainda hoje algumas das Igrejas cristãs celebram uma das mais antigas orações eucarísticas que não contém a narrativa da instituição, tal como nas que conhecemos. Trata-se da Liturgia de Addai e Mari, sobre a qual não resta nenhuma dúvida a respeito de sua legitimidade e valor litúrgico-ritual e doutrinal. É importante destacar tudo isso, tanto a respeito da narrativa da instituição quando da elevação da hóstia e do cálice, para que não corramos o risco de absolutizar esses momentos.

É preciso não esquecer: esses momentos não têm fim em si mesmos, mas estão estreitamente ligados com o todo da celebração. Não se chega à mesa da Eucaristia sem se passar pela mesa da Palavra, pois a Palavra realiza aquilo que comungamos. 

Valorizar o ponto alto da celebração é importante, justamente por ser o ponto alto, que nos encaminha para o momento mais esperado quando, juntos, comungaremos unidos, da vida do Senhor. A pergunta, então, não é sobre o momento exato quando o pão deixa de ser pão e o vinho deixa de ser vinho, sacramentalmente, isto é, quando se dá a “consagração”. 

A verdadeira pergunta é se contribuímos para que os fiéis façam uma profunda, legítima e espiritual experiência com a Eucaristia, não restrita ao pão e ao vinho eucaristizados, mas com o todo da celebração, que manifesta a presença de Cristo em seus muitos elementos simbólico-rituais.

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*Felipe Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com

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