Agência Ecclesia
Autor do livro "A Lista de Bergoglio", Nello Scavo, analisa o pontificado de Francisco.
Agência Ecclesia - Como lhe surgiu a ideia deste livro?
Nello Scavo - Logo após a eleição do Papa Bergoglio, surgiram suspeitas e acusações que o envolviam como cúmplice da ditadura argentina, de 76 a 83. Isto surpreendeu-me! Eu não conhecia muito sobre esta época histórica e comecei a investigar.
AE - Estava diante de acusações com falta de fundamento?
NS - Sim. Percebi que as acusações eram muito estranhas e avancei com esta investigação, que inicialmente publiquei no meu jornal, em Itália, "Avennire".
Depois surgiu este livro, porque enquanto recolhia informação, algumas pessoas diziam-me ter sido ajudadas ou protegidas por Bergoglio durante a ditadura. Vozes que inicialmente eram apenas esporádicas, mas se multiplicaram.
Eu pude verificar com documentos e testemunhos precisos a veracidade destes factos, chegando à conclusão de que Bergoglio bem como os jesuítas argentinos, com a colaboração de jesuítas brasileiros, desenvolveram toda uma atividade de proteção de dissidentes e pessoas perseguidas pela ditadura. Uma atividade extraordinária, correndo riscos muito grandes, mas que permitiu salvar muitas pessoas.
AE - É um momento histórico em que, na Argentina, coexiste uma Igreja da coragem e da denúncia e outra do conformismo e do silêncio?
NS - Na época da ditadura, a Igreja estava dividida. Uma parte do episcopado era claramente cúmplice, pensava que a ditadura era a solução para os problemas da Argentina a sair de uma guerra civil, entre movimentos de esquerda e instituições mais próximas da direita política. Há também uma parte desta Igreja que emerge, nesta tensão, e empenhou-se no salvamento de muitas pessoas que tiveram a coragem de denunciar violações gravíssimas dos direitos humanos.
AE - Recorda casos concretos?
NS - Recordo casos como a Paróquia de Santa Cruz onde alguns leigos foram mortos devido a um infiltrado dos serviços secretos, penso nos padres Palotinos, no Bispo Angelelli, ou sacerdotes como o padre Maurício Silva. Foram assassinado apenas porque entenderam que desenvolviam uma atividade subversiva.
Na hierarquia a Igreja era ambígua. Mas nas bases a Igreja na Argentina desenvolveu, com o tempo, uma consciência crítica muito forte. Bergoglio encontrou-se neste contexto histórico e escolheu salvar a vida de algumas pessoas, no silêncio e no segredo, o que também era motivo de acusação.
Hoje temos a certeza que se Bergoglio se tivesse exposto na sua luta pelos direitos humanos, teria entrado no rol de suspeitos da polícia militar dos serviços secretos e não poderia salvar ninguém. Ele fez uma escolha muito difícil, muito corajosa, mas que permitiu a estas pessoas estarem hoje vivas e poderem revelar uma parte de Bergoglio que não conhecíamos.
AE - Não terá sido fácil recolher estes testemunhos, provenientes de uma época de tanto sofrimento...
NS - Foi muito difícil mas também apaixonante! Muitas destas testemunhas não queriam falar inicialmente. Queriam respeitar o silêncio que tinham decidido impor a estes acontecimentos.
O silêncio surpreendeu-me, no início. Questionava-me: se Bergoglio é inocente porque é que os seus amigos não falam e não o defendem? Ele, pelo contrário, manteve sempre o segredo em torno destas atividades, um pouco também como diz o Evangelho, que "a tua mão direita não saiba o que faz a esquerda".
Foi difícil convencer as pessoas a falar porque sentiam-se a violar um pacto de silêncio e de amizade para com Bergoglio. Depois, diante de documentos que tinha encontrado, testemunhos pessoais e processos dos tribunais, alguns decidiram contar a verdade para dar a conhecer ao mundo quem é verdadeiramente Mario Bergoglio e para afirmar que nenhuma suspeita lhe pode ser atribuída.
Ainda outro elemento: alguns organismos internacionais, não apenas a justiça argentina mas também a Amnistia Internacional, que não é uma organização católica, tinham elaborado um documento interno, que se publica neste livro, e na qual explicam as razões pelas quais Jorge Mario Bergoglio não pode ser acusado. Não existe nada contra ele.
AE - Assim que foi anunciado, o nome de Mario Bergoglio deixou muitos surpreendidos, que não esconderam o seu desconhecimento em relação ao homem escolhido para suceder a Bento XVI. No seu caso, e depois desta investigação, ficou com uma outra ideia do Papa Francisco?
NS - Eu conhecia muito pouco de Jorge Mario Bergoglio e devo dizer que muitos jornalistas, mesmo vaticanistas, conheciam pouco deste homem. Outros já o seguiam há algum tempo e imaginavam que um dia pudesse chegar a Papa.
A reconstrução do livro, a forma com estas pessoas me contaram como era Bergoglio naquela época e a amizade que continuaram a cultivar com ele até agora, porque Bergoglio não as perdeu de vista, possibilitou-me o conhecimento de um outro Jorge Mario Bergoglio. Ele não é apenas o arcebispo, o homem institucional. É verdadeiramente um pastor da Igreja que não teme pôr em risco a sua reputação, a sua vida, para que possa salvar, nem que seja apenas uma das suas ovelhas do seu rebanho. É isto que podemos verificar na coragem que ele está a demonstrar no seu pontificado.
AE - Entende que a coragem que demonstrou diante da ditadura militar lhe fará falta neste momento em que trabalha na renovação da Cúria e quer mais transparência no sistema financeiro do Vaticano?
NS - Muitos pessoas perguntam-me se Bergoglio está em perigo. Eu não creio! Penso que ele não se preocupa minimamente com isso. No entanto, o Papa está a criar muitos inimigos porque tem a coragem, por exemplo, de denunciar a alta finança, os grandes bancos, o poder político que não se ocupa dos pobres nem dos últimos. Pede a todos para que se ocupem destas pessoas. Estou a pensar nessa viagem profética a Lambedusa, o lugar onde desembarca quem quer emigrar para a Europa e o lugar onde a Europa se deve responsabilizar por tantas vidas que se perdem. Porque é que os países de onde provêm estas pessoas são ainda hoje, em 2013, atingidos por pobreza, por guerras?
O Papa está a mudar a forma de viver, até dentro da própria Igreja. O Papa está a mudar muito a forma como de fora se encara a Igreja. Por isso este é um Papa muito forte, que conquistou o carinho e a amizade de tanta gente, crentes e não crentes. A sua força, alimentada pela sua profunda espiritualidade, levá-lo-á muito longe!
AE - E o que pensa o Papa deste livro?
NS - Não faço ideia! Este trabalho não o envolveu. Sei que recebeu uma cópia do livro e que estava ao corrente. No entanto, ele nunca quis falar destes acontecimentos e, a menos que um dia os queira comentar, vai manter-se em silêncio.
Até eu, com o tempo, mudei de opinião: quando inicialmente achava que ele se devia defender, hoje penso que fez bem em ter-se reservado ao silêncio...
Fonte: www.agencia.ecclesia.pt
Nenhum comentário:
Postar um comentário