O documentário ’20.000 Days on Earth’ é uma incursão na personalidade e na arte do músico australiano.
Por Marco Lacerda*
O ponto de partida do documentário ’20.000 Days on Earth’ (20 Mil Dias na Terra) são insights francos e uma descrição do processo criativo de um ícone do rock, Nick Cave, mesclados com reflexões sobre o que nos torna quem somos e a celebração do poder transformador do espírito criativo. “Ao contrário do ator, uma estrela do rock se vê impedida de remover, mesmo fora do palco, a máscara que criou para si mesma”, diz Cave a uma certa altura.
O filme recebeu os prêmios de melhor direção e edição no Sundance Festival 2014 e será lançado mundialmente ainda este ano, depois de escalas em diversos festivais de cinema nos próximos meses. Um deles foi a Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim encerrado neste domingo (16), vencido pelo diretor chinês Diao Yinan, com "Carvão negro, gelo fino".
Elegante e enigmático, os anos converteram Cave num músico de prestígio com amor pelo cinema onde já fez incursões como ator, roteirista e compositor de trilhas sonoras.
’20.000 Days on Earth’(o tempo de vida de Nick) é a história do próprio Nick Cave imaginada e co-escrita por ele, em parceria com Ian Fosyth e Jane Pollard, os diretores do filme que poderia facilmente ser considerado um noir de boa cepa. Aí estão Cave, sua música, seu mistério e um psicanalista falando sobre as relações paterno-filiais do músico. “Não sei se fiz um filme ou montei um divã de psicanálise. O melhor é ver o filme e avaliar o que digo sobre minha infância”, diz.
Temporada no Brasil
“Nick Cave não era o artista mundialmente aclamado de hoje quando veio tocar no Brasil com sua banda, The Bad Seeds, em 1989. Atraíra alguma atenção na virada dos anos 70 para os 80 como líder da banda pós-punk The Birthday Party, e com os Bad Seeds havia lançados discos de respeito no circuito “art rock”, como Kicking Against the Pricks (1985) e Tender Prey (1988). O que a princípio seria uma passagem rápida por um país distante acabou por mudar o curso de sua vida, a ponto de Nick vir morar no Brasil entre 1990 e 1993”, lembra o crítico brasileiro Pedro Alexandre Sanches.
Em São Paulo, Nick aproximou-se dos jornalistas Bia Abramo e Thomas Pappon, da (hoje extinta) revista musical Bizz. Bia o apresentou à amiga Viviane Carneiro, que trabalhava na editora Abril e iniciou um romance com Nick entre noitadas no templo underground da época, o Espaço Retrô. “Decidimos que eu ia morar com ele na Inglaterra, mas logo fiquei grávida, e Nick mesmo falou que era melhor virmos para o Brasil”, conta Viviane, que vive em Londres e hoje é psicoterapeuta. Em 1990, foram morar na Vila Madalena, e em São Paulo nasceu Luke, que hoje tem 19 anos e planeja ser cientista.
“The Good Son foi bastante inspirado na primeira viagem de Nick ao Brasil”, lembra Viviane, referindo-se ao disco de 1990 que começa com uma canção de inspiração religiosa em português, "Foi na Cruz". “Muitas músicas de Henry’s Dream (de 1992) ele escreveu nessa época.”
Segundo Bia Abramo, o Brasil foi importante para o músico num momento em que ele havia passado por uma desintoxicação de heroína. “O Brasil era um bom lugar para isso, a heroína era muito rara aqui. A gente não saía em público, se reunia para fazer som, ouvir som. Era caseirinho, acho que a ideia dele era mesmo dar uma recolhida. Era a São Paulo pré-internet, foi mesmo um recolhimento, uma hibernação”, diz a jornalista.
“Quando conheci Nick ele estava clean, não estava tomando drogas pesadas. No fim da nossa relação ele começou a pegar pesado de novo”, lembra Viviane. “Não acho que tenha ido ao Brasil se limpar, não é bem assim. Não estava tomando heroína, o que não quer dizer que não estava bebendo um monte e fazendo outras coisas”, ri. “Olhando para trás, foi difícil para ele. Tinha a coisa de não falar português, não conseguiu ficar muito independente. A gente era tão jovem, foi um momento muito legal para nós.”
Segundo Bia, o artista não se ligou especialmente ao Brasil: “Não se interessava pelo rock brasileiro, nem pela música brasileira. Nick ficou muito ressentido com o Brasil, não só por causa da imprensa burra e babona, mas também porque não rolaram mais shows aqui. Os tempos eram mais esquisitos que hoje”, lembra Abramo.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor-especial do Domtotal
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