sexta-feira, 21 de março de 2014

Spritz


Aplicativo reduz prazer da leitura a um efeito estroboscópico, provocando uma espécie de transe.
Por Max Velati*

Para a coluna desta semana, sinto-me na obrigação de fazer algumas ressalvas. A primeira é que desenvolvi, ao longo dos anos, alguns hábitos esquisitos ligados ao meu ofício de escritor. Na raiz das minhas esquisitices, há uma certa desconfiança em relação a modismos culturais que pretendem deixar sob a responsabilidade da tecnologia aquilo que na minha opinião deveria ser uma ocupação do corpo e do cérebro. Tecnologia em excesso significa a atrofia de processos orgânicos com efeitos devastadores para a autoestima, autossuficiência e autopreservação. 

Meu celular é de um modelo antigo, ainda uso máquinas de escrever para rascunhos importantes e a versão inicial deste texto foi escrita com uma velha caneta tinteiro. É claro que não tenho Facebook e conheço o Twitter apenas de conversas de bar. Para a leitura, ainda uso apenas livros de papel e pretendo evitar o texto em tela o quanto puder, o que não deixa de ser estranho, já que escrevo regularmente para a mídia digital. Eu disse que era um sujeito esquisito.

Acho a vida moderna frenética, apressada demais e considero esta ansiedade epidêmica a Grande Peste dos novos tempos. Nos trinta e tantos artigos que já publiquei aqui no Dom Total, procurei deixar claro o meu desconforto com a modernidade, daí o nome Rota de Fuga para esta coluna. A causa do meu desconforto talvez seja eu mesmo; o descompasso de um filósofo que, em algum ponto da jornada, perdeu o fio da meada. Enquanto a modernidade não fica mais clara e não se explica a mim devidamente, sigo com as minhas velhas ferramentas e meus estranhos hábitos analógicos. 

Feitas as ressalvas, passo ao tema de hoje sabendo que já estão avisados de que não tenho a isenção que deveria para tratar o Spritz com imparcialidade.

Spritz é uma empresa americana com sede em Boston, Salt Lake City e Munique. Também é o nome do produto que estão lançando e que pretende ser um aplicativo revolucionário para a leitura. Os desenvolvedores concluíram que no processo normal de leitura os olhos gastam preciosas frações de segundo movendo-se de uma palavra a outra na frase. Para otimizar (detesto esta palavra!) esse processo, criaram um aplicativo para computadores, tablets e celulares que exibe o texto uma palavra por vez e sempre no mesmo lugar na tela. O usuário controla esta exibição a partir de 250 palavras por minuto e o ajuste regulável pode chegar ao ritmo alucinado de 1000 palavras por minuto. Um dos recursos para acelerar ainda mais a leitura é a exibição apenas da parte principal da palavra, aproveitando o processo natural do cérebro de completar por conta própria a informação. 

Essa é a descrição do sistema e o Spritz foi criado sob a premissa de que ganharemos tempo se os olhos ficarem bem quietos e se o cérebro receber para trabalhar uma palavra por vez. Na prática, o tal aplicativo transforma qualquer texto em um pisca-pisca irritante e o prazer da leitura é reduzido a um efeito estroboscópico que provoca no leitor uma espécie de transe alfabético. No site da empresa, há uma seção de Perguntas Mais Frequentes e sabemos então que as crianças já estão experimentando o novo recurso.

A discussão do livro digital versus papel já ficou antiga. Não se trata mais de saber se o livro como o conhecemos está mesmo com os dias contados. Temo agora pela arte da leitura, ameaçada pela estranha noção de que o tempo gasto na leitura é um tempo perdido ou que ler mais depressa é melhor do que ler melhor.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de S. Paulo.

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