sexta-feira, 30 de maio de 2014

Tributo ao velho tucano

Vinte e seis anos depois de sua fundação, o partido do grande debate 'apequenou-se'.

Por David Paiva*
Encerrada a ditadura e, pouco depois, aprovada a nova Constituição, o país adquiriu certa disposição para jogar o entulho fora. A própria Constituição já representava o papel principal nessa providência saneadora, mas era preciso preencher os espaços abertos pela democracia recuperada. Esperava-se uma democracia melhor – muito melhor – que a antiga, aquela que fora engolida pelo golpe justamente porque no fundo era uma democracia falsa.
Foi então que entrou em moda uma palavra de efeito ofuscante: "ética". Em política, uma dita “conduta ética” separava a fronteira entre as manchas do passado e o luminoso futuro que imaginaram nos esperar . O que nem sempre ficava claro era o que vinha a ser exatamente um “político ético”. Mas, à falta de conceito mais preciso, fomos adiante. Exemplo de uso licencioso da palavra foram os tais “ministros éticos” do presidente Collor de Melo. Quando já não restava do seu governo um mínimo sinal de vida, vozes ainda saíam do Planalto – era a autoridade residual e moribunda dos dois ou três "ministros éticos", por mais difícil que fosse enxergar qualquer ética sob um personagem como Collor de Melo.
Pouco antes desses episódios (quase cômicos, à distância), a ética parecera estar em melhores mãos. Em 1988, surgira um partido que à primeira vista era forte e herdeiro da tradicional família europeia da socialdemocracia, que conduzira tantos avanços no pós-guerra. Porém, no caso brasileiro, o maior impacto do novo partido vinha da sua ênfase na questão ética. Estratégia ou convicção, o fato é que os líderes da nova sigla tinham autoridade para isso – o que não era pouco capital político-eleitoral.
Aliás, a fundação do partido se devia justamente ao rompimento daquele grupo com a liderança que dominava o PMDB, seu abrigo anterior – uma liderança formada na politicalha mais rasteira, populista e acusada das piores práticas. O nome escolhido para o novo partido era ruim em qualquer quesito, até porque sua sigla lembrava a anterior: Partido da Social Democracia Brasileira-PSDB.
Mas o PSDB constituía uma novidade – ou, para o Brasil, talvez fosse uma excentricidade. Sua origem, o centro ideológico e a classe média, era urbana e cosmopolita com um discurso progressista – e ético. Não tinha dono, seus líderes não eram caudilhos nem coronéis, e seu programa pregava o parlamentarismo e a ação decidida na redistribuição de renda. Seu laboratório de ideias era principalmente a universidade. O PSDB parecia destinado ao grande debate, em contraponto civilizado com o irmão à esquerda, o PT, fundado um pouco antes a partir dos sindicatos. Os dois, PSDB e PT, pareciam historicamente tão apropriados um ao outro, e ao novo país, que essa complementariedade de peças da esquerda democrática poderia equivaler a uma revolução no modo de pensar, discutir e dirigir o Brasil. Isso sim, era luz no fim do longo túnel iniciado com o próprio Descobrimento, o túnel que o país vem atravessando há séculos como fazenda-entreposto de escravos.
Mas o PSDB de origem – os velhos tucanos – saiu de cena. Envelheceu, morreu, desistiu. O que sobrou aderiu à escola convencional dos partidos de temporadas eleitorais. O partido do grande debate por fim "apequenou-se". Vinte e seis anos depois da sua fundação, os "jovens" tucanos ainda falam em políticas sociais, mas não se identificam com elas. Falam de ética apenas como adorno; no máximo, só querem dizer que "não assaltamos cofres.  Há dúvidas a respeito e, mesmo se não houvesse, seria muito pouco. Ética não são credenciais para fulano ou beltrano entrar no céu; ela existe para que o governante não se iluda e não perca nunca a sensibilidade diante de esgotos a céu aberto.
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é escritor.

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