sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A guerra de Deus

No século 21, religiões ainda são capazes de sacralizar manchas de sangue.

Por David Paiva*

Na última terça-feira 4, começou a vigorar a trégua de 72 horas entre Israel e o Hamas. No Cairo, os beligerantes tentam algum acordo através de representantes; de qualquer forma são negociações muito difíceis, pois o Hamas não deseja menos que “jogar Israel no mar”, e Israel não admite riscos à sua segurança – entendida esta segurança como a prevalência indiscutível dos seus próprios métodos.
A Faixa de Gaza é algo como um território-favelão de 360 km², onde nada se produz e toda a importação chega por túneis clandestinos. A população, hoje de 1,8 milhão de habitantes, cresce 3,2% ao ano. Tudo está semidestruído por bombardeios, os de agora e os do passado, não há aeroportos e praticamente não há estradas. O território foi estabelecido em 1949, como refúgio dos palestinos expulsos de Israel depois do conflito de 1948, o primeiro decorrente da fundação do Estado judeu.
Até o início do cessar-fogo desta semana, já haviam morrido 1881 palestinos em Gaza, contra 67 israelenses (64 militares). O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu reafirma a determinação de levar até o fim a aniquilação das milícias do Hamas. O resto do mundo fica pasmo: como pode uma potência militar e econômica do porte de Israel avançar tão ferozmente sobre um agrupamento tão precário? E será preciso matar tantos civis? Pela guerra de hoje e pela arrogância sem fim, Israel vai perdendo a batalha da opinião pública internacional – pelo menos em parte. Mas parece que, apesar de tudo, o país ainda dispõe de muito prestígio moral para desperdiçar.
E de onde vêm tanto prestígio e tanta autoridade? Vêm de Deus, segundo eles próprios. Tudo começou mais ou menos no fim do terceiro milênio a.C., quando um grupo de migrantes originário da Mesopotâmia apareceu no Egito. Eram conhecidos como habiru, segundo achados arqueológicos de Mari e fontes egípcias. Viviam como nômades, mas eram diferentes dos povos do deserto, como os beduínos; sua cultura era superior e serviam como soldados mercenários e funcionários graduados. Adquiriram terras e enriqueceram. O gentílico habiru levou a hebreu, e o hebraico era uma das suas línguas; Abraão, o personagem bíblico, era um dos seus chefes tribais.
Foram provavelmente os primeiros monoteístas; entendiam-se com um único Deus “todo poderoso”, que valia por aquela multidão amoral do olimpo do paganismo. O Deus hebreu era ético e celebrou com aquele povo uma espécie de pacto de lealdade – o “povo escolhido” devia fidelidade a Jeovah, o Deus único, e recebia Dele a terra onde viveria. O historiador Paul Johnson observa: “A ideia do pacto é extraordinária, sem qualquer paralelo no antigo Oriente Próximo”.
Os hebreus reinaram durante séculos na Palestina, até se dispersarem depois da destruição do templo pelos romanos, em 70 d.C. Daí em diante, foram vistos, onde andassem, como um povo que cultuava suas diferenças e que era ao mesmo tempo mais inteligente e estudioso, além de mais fechado e mordaz. E mais: um povo que se preparava para dominar o mundo. Chegaram a forjar documentos para provar a ameaça judaica. O antissemitismo deu no genocídio nazista. Quando os países vencedores da Segunda Guerra aceitaram reparar os judeus pelos sofrimentos, entregando-lhes uma terra, os beneficiários só a aceitaram na Palestina, sua terra, como no pacto com Jeovah.
Agora e em qualquer tempo, defender e eventualmente expandir a terra de Israel, acima de toda racionalidade e humanidade, é dever sagrado dos hebreus – habiru – perante Jeovah. O caráter divino da sua tarefa lhes confere o que acreditam ser “o seu direito”. Apesar de todo o horror que a destruição de Gaza e a opção militarista provocam, Israel continua merecendo a tolerância moral e as armas do ocidente cristão. Compreensível: Jeovah, o doador da terra deles, é o mesmo Deus cristão. No século 21, religiões ainda são capazes de sacralizar manchas de sangue.
*David Paiva cursou História na UFMG, foi redator publicitário e é autor do livro “Memórias dos ‘abitantes’ de Paris".

Nenhum comentário:

Postar um comentário