segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Em Paris, resseco por dentro e broto por fora

Vou tentar entender meus interiores e despenhadeiros para buscar algo melhor do que fui.
Por Ricardo Soares*
Aqui Dom Total, Paris. Perto do canal de la Villette na margem direita da rue Riquet, cinco graus e chuva na noite de domingo após tarde afável e aprazível na companhia dos amigos Rosane Andrade e Plínio Righon entre risoto, risadas, bons vinhos e a visita de amigos franceses Olivier e Allan que falam das nossas diferenças culturais. Sob prisma bem humorado logicamente porque o ano que passou foi pesado para eles aqui e para nós aí, do outro lado do Atlântico.
Ao redor da mesa e da sobremesa não aparecem nosso torrencial de mazelas pois no começo do ano ninguém parece querer lembrar dos nossos horrores nem falar dos nossos temores. Aqui temos planos, muitos planos, salvo enganos. A exposição fotográfica-antropofágica de minha amiga que vai acontecer em abril, os planos italianos de Plínio, a viagem para o Rio que Olivier faz em breve, a suave ressaca de Allan, o meu residual existencialista que escorre junto à chuva que bate na janela do quinto andar. Bebo um chá húngaro e olho, curado, para o meu passado recente e creio ter feito o que foi possível. Não quero agora pensar em televisão, comunicação pública, palavras e promessas que cairam em fendas abismais. Quero abraçar as palavras do jovem que eu fui e que debandaram quando renunciei a uma vida de livros e fui viver a vida de vivos e nem sempre bem dispostos destinos imagéticos.
Não vou falar dificil, vou destrinchar a baguette nossa de cada dia e tentar entender melhor meu país e o país que por enquanto adotei. Vou tentar entender meus interiores e despenhadeiros para buscar algo melhor do que fui. Não vou praticar auto-ajuda mas desfiar um rosário suave do trivial simples que me cerca. As vezes pequenos temas são grandes temas e mesmo aqui procuro a simplicidade das coisas miúdas, o universo tátil que a gente deixa de perceber concentrado em tantos planos e tecnologia.
Começo a reconhecer minha nova vizinhança. Comprei lentilhas alaranjadas em um árabe aqui perto, saudei chineses que nos mostraram diferentes rabanetes, já cumprimento a vendedora de baguettes fresquinhas e sei com quantos jovens tunisianos se faz um bar animadaço aqui do lado. As pessoas falam pouco do atentado de 13 de novembro e parecem temer mais uma futura disputa presidencial entre Marine Le Pen e Sarkozy, o que parece uma tragédia completa a essa altura. Mas 2016 mal começou e Paris está latente e chuvosa. Turistas continuam flanando e fotografando. A vida pulsa em parques lindos de árvores secas. A calefação me resseca por dentro mas eu broto por fora. Isso é o que importa. Brotar de novo e sempre. Feliz ano novo prezados leitores.
*Ricardo Soares é escritor, jornalista, roteirista e diretor de tv. Autor de sete livros foi cronista dos jornais "O Estado de S.Paulo" e "Jornal da Tarde" entre outros.

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