Aqui todo processo vira um processo, mas de decomposição natural, sem desfecho, sem conclusão.
Por Max Velati*
Não sei onde tudo começou. Se procurarmos tenho certeza que vamos encontrar exemplos desembarcando já nas primeiras caravelas. O fato é que se trata de um problema que não queremos resolver, uma doença que não queremos curar, um vício que não acaba, uma mancha que não esfregamos com vontade.
Estou falando da impunidade.
Já foi dito e com absoluta precisão que “no Brasil tudo se perde no processo”. Já ouvi as teorias mais absurdas para justificar esta preguiça cidadã. Não faltam críticas ao nosso tartaruguismo jurídico atribuindo tudo à nossa burocracia bizantina e às infinitas e labirínticas instâncias. O fato é que aqui todo processo vira um processo, mas de decomposição natural, sem desfecho, sem conclusão, sem a incoveniente e apressada interferência da justiça. É sempre uma questão de apodrecimento. Tudo fica como está até que o tempo, o bolor e as traças façam o trabalho dos tribunais e não importa o que aconteça, nada acontece.
Abro aqui um parágrafo inteiro para uma honrosa exceção. Duas, na verdade. O mensalão nos deu uma amostra do que pode fazer a justiça. E todo o mérito do mundo para a Lava Jato e as operações derivadas. Um oasis de ordem e progresso numa bandeira que já não tem mais ouro e florestas e não teria mais céu se ele pudesse ser roubado.
Puxando pela memória tento recordar quando foi que percebi o primeiro grande exemplo de impunidade explícita neste Brasil bonito por natureza. Creio que o amigo leitor, se já passou dos quarenta ou cinquenta, vai se lembrar do roubo da Jules Rimet, surrupiada da sede da CBF há mais de quarenta anos. Não bastasse a estupidez dos dirigentes, exibindo o troféu original e guardando a cópia no cofre, registra-se a nossa histórica impunidade, já que nenhum dos acusados cumpriu pena integral. Foram surpreendidos pelo azar e pelo Destino, mas não pela justiça.
O caro leitor e a prezada leitora também devem conhecer o caso do naufrágio do Bateau Mouche, no reveillon de 1989. A tragédia registrou 55 mortos e o caso se arrastou por mais de 20 anos na justiça, oferecendo um exemplo clássico do que quero dizer com sistema bizantino. No trecho a seguir, lido no julgamento do caso, até mesmo o leigo em Direito vai perceber o nó Górdio. A ementa dizia: “Embargos de declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no recurso extraordinário nos embargos de declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no recurso especial.”
Com os nossos antecedentes, que me desculpem os leitores se eu não me mostro tão surpreso com o fato de que sobre os 242 mortos e 680 feridos no incêndio da Boate Kiss em Santa Maria, já são três anos sem conclusões. Também não me espanta a demora, o apodrecimento natural do processo junto com 4800 bois mortos no naufrágio em Barcarena, no Pará em dezembro do ano passado. Também considero coerente com a nossa História a falta de notícias e punições já com 80 e tantos dias desde a tragédia em Mariana.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é professor de esgrima e chargista de Economia da Folha de S. Paulo. Publica no Dom Total toda sexta feira.
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