segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Tempos de mártires

Que possamos aprender a ter uma fé madura e alicerçada na rocha que é Jesus Cristo.
Por Cardeal Orani João Tempesta*
A história do Cristianismo é mesclada com a história de incontáveis mártires que, desde os primeiros séculos até os dias de hoje, testemunham, com o derramamento de sangue, a fé incondicional no Salvador da humanidade. Antes de tudo, podemos nos perguntar: que é um mártir? Mártir evoca aquele que morre em meio a suplícios devido à perseguição por causa da fé. Mas é necessário recordar que essa palavra grega significa “testemunha”. O mártir dá testemunho de sua fé em Jesus, que é único Senhor, excluindo qualquer outro, até mesmo um imperador. O cristão não busca o martírio, muito embora isso possa ocorrer. Ele defende sua vida e pode fugir à perseguição, mas, quando esta chega, dá testemunho até o fim, imitando Jesus até em sua paixão e em sua morte. Assim, o mártir se identifica com Jesus.
Nos Atos dos Apóstolos temos o relato do martírio de Estevão e do apóstolo Tiago. A partir daí, o Cristianismo é espalhado pelo mundo e chega a Roma, onde sob o imperador Nero (64 D.C) inaugura-se uma verdadeira caça aos cristãos, a qual só terá fim três séculos depois. 
A expansão do Cristianismo se defrontou com sérios obstáculos: 1- São Paulo notava que a mensagem da cruz é “escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1 Cor 1,23). O Cristianismo exigia a renúncia à vida devassa e morte ao velho homem para possibilitar a formação da nova criatura em cada indivíduo (cf. Ef 4,22s). 2- O politeísmo era o culto oficial do Império; parecia ameaçado pelo monoteísmo cristão, que parecia até mesmo ateísmo. Os cristãos pareciam indefesos aos homens e ao Estado, pois estavam solapando as bases destes. Notemos que os romanos eram tolerantes para com a religião dos povos conquistados; colocavam os deuses destes no Panteão de Roma. Os cristãos de modo nenhum aceitariam pactuar com o politeísmo. 3- O culto do Imperador divinizado foi-se difundindo desde fins do século I. Veio a ser pedra de toque da lealdade civil e do patriotismo; quem o recusasse, era acusado de traição à pátria. Assim acontecia com os cristãos que negavam adorar o Imperador. 4- Toda a vida civil, em família ou na sociedade, era impregnada do espírito e das expressões do paganismo; assim, as festas do lar comemoravam os deuses domésticos. Os cristãos eram fiéis aos seus deveres de cidadãos, como lhes ensinava o Evangelho: “Dai a César o que é de César” (Mt 22, 21). 5- O modo de vida singular dos cristãos provocou-lhes, da parte dos pagãos, calúnias fantasiosas e duras. Eram acusados a três títulos principais: 1- Ateísmo; 2- Banquetes de orgia, nos quais se comia carne de criança; assim era entendida a Eucaristia, por vezes celebrada às ocultas por causa dos perseguidores; 3- Difundiam a todos que o culto cristão se dirigiria a um “asno” crucificado (tal era o mal-entendido que o Crucifixo suscitava; seria “burrice”). As charges contra Cristo já são antigas...
Os séculos II e III (até o ano de 313) na História do Cristianismo são marcados pelas perseguições do Império Romano e pelo sangue derramado dos mártires. O altíssimo valor deste testemunho – de quem preferia entregar a própria vida a renegar a fé em Cristo – foi logo percebido e deu lugar a muitos documentos, como por exemplo, acta martyrum e passiones, celebrando o heroísmo dos cristãos, e logo depois a um culto de veneração, que se intensifica nos séculos III e IV.
Posteriormente, o culto dos mártires e a admiração por eles suscitada geraram também certo número de contos, lendas e interpretações exageradas na devoção e literatura populares. É claro que sempre devemos nos ater aos fatos comprovados, ou razoavelmente certos, e não ao romance, mesmo piedoso ou edificante. O Cristianismo não precisa senão dos fatos para a sua história e a sua grandeza. Uma visão realista e honesta dos acontecimentos será também a mais eficaz lição para as lutas dos cristãos de hoje, e poderá suscitar permanentemente zelo e dedicação à causa da justiça e da liberdade cristã.
Não existiram mártires só nos primeiros séculos, mas em todas as épocas e lugares temos muitos testemunhos de mártires. A história da Igreja em todos os cantos do planeta é permeada pelo testemunho dos mártires, sementes de novos cristãos. Porém, quando falamos de perseguição ao Cristianismo, nada pode se comparar ao século XX e a este início do século XXI. Só os mártires provenientes das grandes revoluções e regimes ditatoriais superam os de toda a história. A Revolução Russa (1917), por exemplo, levou à morte cerca de 17 mil sacerdotes e 34 mil religiosos. O Comunismo se espalhou pelo mundo e declarou a religião como subversiva e inimiga do Estado. Igrejas, conventos e seminários são fechados e destruídos. São incontáveis os números de mártires por diversos motivos em países como União Soviética, Lituânia, Romênia, China, Vietnã, Camboja e Cuba. Mesmo em países tidos como cristãos, como Espanha e México, entre tantos outros, encontramos a perseguição e o martírio.
A perseguição em nossos tempos não é somente a física, ou seja, o martírio de sangue. Existe outra forma de perseguição que se espalha pelo mundo e por países que, antes, eram profundamente cristãos. Segundo o Papa Emérito Bento XVI: “hoje existe o martírio da ridicularização, ou seja, se você se denomina cristão no trabalho, na universidade ou coloca um crucifixo no peito, eles o ridicularizam. Vão chamá-lo de alienado, de fundamentalista, medieval. Não é uma perseguição que vem com as armas, mas com a cultura”. Este é um dos tipos que no Ocidente, tido como cristão, mais tem vilipendiado a religião e ofendido os católicos que veem sua fé sendo ridicularizada em tantas situações.
Portanto, mártir é todo aquele que morre em nome da fé. A estes queremos pedir a graça, e que nos ensinem a ter uma fé madura e alicerçada na rocha que é Jesus Cristo. 
Aproveito para fazer a invocação da Igreja primitiva: “que o sangue dos mártires seja semente de novos cristãos”.
CNBB 14-01-2016.
*Cardeal Orani João Tempesta é arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ).

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