A comunicação ampla, geral e irrestrita virou um celeiro de atrocidades.
Por Fernando Fabbrini*
Comprei uma caixa de suco de laranjas no supermercado, sem olhar a marca, considerando apenas o preço da promoção que me atraiu. Chegando em casa, ao descarregar as sacolas, li o texto impresso na caixinha: “suco sem adição de açúcares, água e conservantes, feito por jovens cansados da mesmice”.
Não acreditei. Botei os óculos de leitura e reli. Era isso mesmo! O fabricante – auto denominado baluarte das forças do bem e inimigo convicto de Darth Vader – garantia que o conteúdo não tinha sido friamente elaborado por máquinas que cortaram, espremeram e descartaram laranjas, em algum lugar do Brasil. Ah, não, jamais, nunca. Fora, ao contrário, cuidadosamente preparado por jovens cansados da mesmice. Que mensagem auspiciosa!
Enquanto saboreava o líquido, assentado após a maratona do supermercado, passei a filosofar em torno da inusitada e quase metafísica afirmativa. Numa escala particular de valores, coloquei os seres humanos à frente das referidas frutas cítricas, por uma questão de justiça. Quem seriam esses jovens cansados da mesmice? De onde vieram? Quais caminhos trilharam? Quais histórias pessoais e experiências enriquecedoras poderiam compartilhar conosco? E quais os graves motivos que os levaram, por exemplo, a abandonar as manifestações pelo passe livre ou a ocupação revolucionária do espaço urbano, ou ainda uma banda de rock em formação – estas mesmices de hoje - para se dedicarem, de corpo e alma, ao manuseio delicado das laranjas?
Creio que essa turma diferenciada apresenta claro viés transformador; são rebeldes, não-conformistas. Suas almas devem ter passado por terríveis conflitos, pelas rotinas massacrantes dos jovens de hoje: acordar-estudar-almoçar-ver TV-sair com a turma-beber cerveja-namorar-voltar pra casa. Poucos suportam esses suplícios, é verdade. Alguns procuram o alívio nas drogas ou na militância político-partidária - e nelas se afundam para sempre, numa viagem sem volta. Porém, felizmente, existem aqueles escolhidos, os privilegiados das mentes brilhantes, os especiais que emergem do fundo do poço para o cume das laranjeiras floridas, seus lugares no nirvana bucólico. E ali, cansados da mesmice, podem afinal iluminarem suas auras tomando nas mãos milhares de frutas e conduzindo-as como um dócil rebanho até a fábrica, acolhedora, que resplandece sob o sol ameno da tarde primaveril. (Música suave/cena final de jovens sorridentes/entram letreiros e logo)
Impressionado com a afirmação da caixinha, ainda improvisei uma pequena pesquisa doméstica, solicitando aos familiares novas interpretações e olhares críticos que me esclarecessem o real sentido da bela e misteriosa frase. Para minha decepção, o máximo que obtive foi:
- E você acredita numa bobagem dessas?
Claro que não acredito. Até este ponto de minha coluna só me diverti, como gosto de fazer quando escrevo. E será que existe, no vasto território nacional, um único indivíduo capaz de engolir tamanha asneira? Acreditar na existência de jovens cansados da mesmice e que revoltados com o mundo hostil e desumano decidiram passar a vida espremendo laranjas, meditando ou cantando mantras?
Cada vez mais, a publicidade e o marketing vêm inventando essas besteiras. A comunicação ampla, geral e irrestrita virou um celeiro de atrocidades. Por outro lado, as pessoas – o chamado público-alvo - andam cada vez mais bem informadas, desconfiadas e críticas. Com isso, os gênios criativos das agências, os marqueteiros do poder, os criadores de ilusões devem estar penando para ganharem corações e mentes nesse cenário adverso da descrença geral.
Não deve ser mole preparar slogans e estratégias de comunicação com fins de enganação. A realidade dura, seca e violenta reduz a pó, em segundos, frases pomposas e campanhas bonitinhas e milionárias. Ninguém suporta enrolação, por mais linda que seja. Por exemplo: quais razões nos convencerão que vivemos, de fato, na Pátria Educadora se a Educação vem sendo a pasta mais afetada pelo corte de verbas? E artistas do axé e adeptos do puxa-saquismo oficial recebem fortunas para suas turnês, filmes e biografias “de impacto cultural positivo”?
Das laranjas da caixinha até os laranjas do mundo do crime foi só um pulo ao galho vizinho. Ao contrário dos jovens do suco, estes laranjas, substantivos masculinos, lutam contra o Bem, engrossam as fileiras do Lado Escuro da Força. Também cansados da mesmice e de uma vida honrada, os laranjas do crime preferiram encher os bolsos e assumir a posse oficial de contas, sítios e apartamentos de luxo. E que imaginação prodigiosa eles têm! São imbatíveis na criação de histórias para protegerem os meliantes aos quais estão ligados. Quando acuados, escorregam; arrumam bons advogados; ficam em silêncio, recebem liminares.
E assim nós, os brasileiros verdadeiramente cansados da mesmice e da safadeza geral, prosseguiremos assistindo pela TV o espetáculo da enganação glamorosa e milionária. Burros, irresponsáveis na gestão e cada vez mais falsos no uso da comunicação, este governo imaginário só ficará satisfeito quando nos espremer até o fim, sugando as últimas gotas de nosso trabalho via impostos indecentes. Chega: já estamos no bagaço.
* Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.
Nenhum comentário:
Postar um comentário