sexta-feira, 20 de maio de 2016

De Jesus a Dilma: cenários de injustiça e traição

As temáticas de traição e injustiça não se restringem às experiências de Jesus e de Dilma.
Dilma tem que conviver com a realidade da traição por parte do vice-presidente.
Dilma tem que conviver com a realidade da traição por parte do vice-presidente.
Por Tânia da Silva Mayer*
Pipocam analogias possíveis para o medonho e trágico momento político que o Brasil enfrenta hoje. Desde as rodas de conversas, aos instantâneos compartilhamentos nas redes, até os boletins de rádio e televisão só escuta-se falar no caos político que o país está vivendo, isso não é sem razões. No entanto, muita informação é negligenciada e muita notícia é maquiada para dar uma impressão de que há certa “ordem”, ou normalidade, em tudo o que está acontecendo, e disso não estamos convencidos. Um olhar mais atencioso e silencioso, diante da barulheira anômala que se instituiu, fará, aos poucos, com que todos entendam o escopo de todos esses acontecimentos caretas.
Tentando buscar na história humana acontecimentos os mínimos parecidos com os de nosso tempo é que podemos apresentar as reflexões que se seguem. Uma releitura dos fatos nos permitirá estabelecer uma analogia entre Jesus e Dilma Rousseff, a partir de dois temas fundamentais e comuns aos dois personagens, a saber: traição e injustiça. Por analogia entenderemos, aqui, sempre as relações de semelhanças interrompidas por processos de dessemelhanças maiores. Assumindo essa definição de analogia, nos livramos da tentação de criar comparações irresponsáveis, e, assim, elas se eximirão de uma justaposição das histórias dos dois personagens em questão. Entendemos que as temáticas de traição e injustiça não se restringem às experiências de Jesus e de Dilma. Não é incomum ser traído ou injustiçado, especialmente por pessoas com as quais cultiva-se alguma espécie de relação de proximidade. Mas não é por causa da banalização da traição e da injustiça que elas deixam de serem práticas abomináveis e condenáveis socialmente.
Quem poderia esquecer a história de Jesus de Nazaré narrada pelos Evangelhos e que constituiu-se como marco para a história da humanidade? Certamente, quem tem fé e sabe fazer memória não deixa escapar nenhum detalhe da dramática história desse homem. O evangelho de Marcos é categórico ao afirmar que a fama de Jesus se espalhou por toda a parte, sobretudo entre as multidões que viam ou ouviam falar das suas obras e palavras (cf. Mc 1,28; 3,7-8). De fato, as ações e palavras de Jesus contrastam a curiosidade, o interesse e o encantamento das multidões, com a inveja e a ira de religiosos e poderosos (cf. Mt 27,18). Jesus revelou-se como o Justo e isso significa que a sua vida sempre esteve referida a Deus e ao próximo de maneira justa e, nesse sentido, solidária. Sua proximidade com os outros mostrou, progressivamente, que, em Jesus, o exercício do amor antecedeu a própria Lei de Moisés, no sentido de que seus atos e palavras, plenos de misericórdia e justiça, chocaram a obviedade da Lei que já não fazia sentido para os religiosos de Israel como exigência ética urgente (cf. Lc 10, 25-37).
O Reino, comunicado preferencialmente aos pobres e a todos os que se encontram com suas vidas ameaçadas, foi inaugurado por Jesus num processo de libertação do povo das amarras que impediam a promoção da dignidade de cada pessoa em Israel. Isso tudo fez de Jesus o Messias a respeito do qual ninguém ouviu dizer. A práxis libertadora de Jesus, de livre exercício do amor, revelou para o mundo que ele não era o tal messias que iria promover a libertação político-social de Israel. Ele não é o messias das armas e dos cavalos de batalhas que estabelecerão a ordem por meio das guerras sangrentas; contrariamente Jesus é o Messias da paz e da justiça que se solidariza com os marginalizados do mundo a fim de que tenham vida abundante.
A vivência antecipada do amor, ao chocar-se com a obviedade não tão óbvia da Lei mosaica, não causou escândalo somente para os que se eximiram do círculo de Jesus, mas, e também, para seus próprios discípulos/as, que pareceram não ter compreendido nada a respeito da sua missão, mesmo diante da tragédia da cruz (cf. Mc 10, 35-45). Pedro e Judas encarnam muito bem esse sentimento de incompreensão e rejeição ao destino, nada glorioso, do Mestre. Se Pedro encontra-se num processo de acolhimento e rejeição ao trágico destino de Jesus, coisa que o faz negá-lo (cf. Mt 26,69-75); Judas, por sua vez, encontra-se no lugar daquele que não foi capaz de sustentar o projeto do Reino que havia acolhido ao se tornar discípulo de Jesus (cf. Mt 26,23). Preocupado com as finanças, ele se tornará o ícone dos covardes que ousam trair os companheiros para beneficiarem-se a si mesmos (cf. Mt 27,3). Uma vez traído por Judas, Jesus sofrerá a Paixão, e seu corpo suspenso na cruz narrará ao mundo a trágica história de uma vida que não deveria terminar assim. Ele é o Justo, condenado para ser crucificado como o maldito de Deus (cf. Gl 3,13); foi entregue numa “delação premiada”, alá “judaniana”, mas sem provas eficientes que corroborassem seu crime, num julgamento ilegítimo e pela negligência dos que simplesmente lavam as mãos. Sua única defesa foi a história da sua vida, sempre convertida a Deus e aos outros.
Numa relação de semelhanças interrompidas por dessemelhanças maiores, e na ausência da veracidade de fatos, os quais a história irá julgar, não é possível equiparar a justeza de Jesus com a de Dilma. Ele é o Justo por excelência, ela e todos nós estamos sujeitos às intempéries da história. Mas há em Dilma uma coerência que é fruto da ausência de crimes pesando sobre ela. Sua imagem revela uma mulher limpa, uma política honesta que não sucumbiu à corrupção tal como seus correligionários de profissão. Mesmo o suposto crime de responsabilidade, das tais pedaladas fiscais, os olhos e ouvidos leigos, porém atentos, em matéria de direito, conseguem perceber na fala dos propositores do Impeachment a ausência de provas convincentes para condenar a Presidenta da República. A injustiça, no caso de Dilma, não somente se refere à sua conduta de política ficha limpa, como também ao fato dos presidentes anteriores e de atuais governadores terem praticado os mesmos atos que os de Dilma. Tal como na história de Jesus, nos perguntamos a respeito de Dilma: Por que e somente ela? E os outros, não são também criminosos? Não praticaram os mesmos atos?  Por que e somente com ela? São perguntas que nascem da constatação de que há uma assimetria na lei que pune alguns, mas não todos. Essas perguntas surgem na contemplação da balança desequilibrada que trabalha com dois pesos e duas medidas.
Não fosse suficiente sujeitar-se a um processo injusto, Dilma tem que conviver com a realidade da traição por parte do vice-presidente, Michel Temer, que com ela assinou um projeto de governo para o Brasil nas eleições de 2014. A “Carta de Temer” e o “Áudio de Temer” foram sinais, mais que evidentes, de que o vice trairia Dilma na tentativa de salvar o barco dos corruptos que afundava no alto mar de corrupções milionárias. Porém, o programa político do Temer revela a fundo a traição, não somente à Dilma, mas aos brasileiros/as que o elegeram vice-presidente na chapa dela. Ele é o traidor do povo na medida em que não honrou o projeto que “acolheu” quando candidatou-se, um projeto de governo que ganhou as eleições passadas, diga-se em tempo. Os acontecimentos das últimas semanas revelam que, junto com a Dilma, o Brasil foi traído e, sobretudo, a democracia foi traída; e tal qual a trágica história de Jesus, essa traição já apresenta resultados catastróficos para o povo, quiçá irreversíveis. O destino nem sequer se desponta nebuloso, é um momento de trevas que surgiram na esteira da traição e da injustiça. A história é que dirá, com alguma propriedade, como teremos convivido com um new Judas e com mais uma condenação injusta, ou talvez nenhuma dessas duas coisas, a história é que dirá. 
*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

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