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Jesus se fez solidário à nossa história e à inteira criação.
Quando quis Deus revelar-nos seu mais puro amor, Ele se fez corpo.
Por Sinivaldo S. Tavares*
Na raiz da nossa experiência de fé se encontra um pressuposto nem sempre devidamente explicitado nas suas legítimas e reais extensões: trata-se do mistério da Encarnação do Filho Unigênito de Deus. Este mistério cujo ápice se dá no evento denso de significado da entrega feita por Jesus de seu corpo e do seu Espírito revela com todas as letras que os caminhos do Deus trino e uno são o corpo, a história e a materialidade de suas criaturas.
Na existência de Jesus, professamos que Deus se fez singularmente presente, revelando-nos traços característicos de seu rosto. A singularidade da trajetória histórica de Jesus nos é descrita mediante gestos e atitudes, sinais e palavras que brotam de uma experiência existencial vivida no corpo e, portanto, marcada pelas circunstâncias biográficas, sociais, históricas e cósmicas de Jesus de Nazaré.
Referindo-se à singularidade da existência de Cristo e à peculiaridade de seu ministério público culminado em sua morte de cruz, a Carta aos Hebreus fala de uma autêntica existência sacerdotal e, portanto, sacrificial de Jesus: "Eis por que, ao entrar no mundo, Cristo diz: 'Não quiseste sacrifícios nem oblações, mas preparaste-me um corpo. Não te agradaram holocaustos nem sacrifícios pelo pecado. Então eu disse: Eis-me aqui, ó Deus, venho para fazer a tua vontade'" (Hb 10, 5-7).
Jesus assume a peculiar incumbência que lhe é conferida, disposto a realizar a vontade do Pai não a despeito de sua existência corporal, mas, sim, fazendo de sua condição histórico-corporal a ocasião propícia para realizar a missão recebida do Pai. O sacrifício de Jesus, portanto, à diferença dos sacrifícios antigos, é de caráter existencial. Jesus não se satisfaz em oferecer a Deus algo que não seja Ele mesmo. Ao contrário, Ele faz da própria vida uma oblação agradável a Deus, um autêntico sacrifício, no sentido etimológico do termo. E Deus Pai, por sua vez, não se revela como um deus sanguinário e violento que se satisfaz com o sofrimento e a morte de seu próprio Filho. Ele espera de Jesus a fidelidade extrema, a despeito de tudo o que possa acontecer. Neste sentido, o Pai não quer diretamente a morte de Jesus, mas aceita de bom grado o gesto de amor e de fidelidade levado às últimas conseqüências por Jesus mediante a morte livremente assumida como expressão de solidariedade.
Neste sentido, pode-se dizer que Jesus viveu entre nós potencializando ao máximo sua condição humana, escandida nas circunstâncias espácio-temporais que caracterizaram sua existência no corpo. Conforme atesta a Gaudium et Spes no seu conhecido parágrafo 22: "Como a natureza humana foi n’Ele assumida, não aniquilada, por isso mesmo também foi em nós elevada a uma dignidade sublime. Com efeito por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-Se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano".
A expressão maior do que estamos dizendo é justamente o evento por excelência da fé cristã: quando quis Deus revelar-nos seu mais puro amor, Ele se fez corpo, assumindo plenamente nossa condição humana. Viveu com tamanha intensidade a existência humana em meio a suas circunstâncias, revelando-nos assim a peculiar intensidade de seu amor para conosco. Não teria alcançado revelar-nos seu genuíno amor, caso não houvesse sorvido a seiva de nossa humanidade até sua última gota. Como exprime a poetisa mineira Adélia Prado, em seu poema intitulado "Festa do Corpo de Deus":
Como um tumor maduro
a poesia pulsa dolorosa
anunciando a paixão:
"Ó Crux ave, spes única
Ó passiones tempore".
Jesus tem um par de nádegas!
Mais que Javé na montanha
esta revelação me prostra.
Ó mistério, mistério,
suspenso no madeiro
o corpo humano de Deus.
É próprio do sexo o ar
que nos faunos velhos surpreendo,
em crianças supostamente pervertidas
a que chamam dissoluto.
Nisto consiste o crime,
em fotografar uma mulher gozando
e dizer: eis a face do pecado.
Por séculos e séculos
os demônios porfiaram em nos cegar com este embuste.
E teu corpo na cruz, suspenso.
E teu corpo na cruz, sem panos:
olha para mim.
Eu te adoro, ó salvador meu
que apaixonadamente me revelas
a inocência da carne.
Expondo-te como um fruto
nesta árvore de execração
o que dizes é amor,
amor do corpo, amor [1].
Ao assumir até as últimas conseqüências nossa condição humana, Jesus se fez solidário à nossa história e à inteira criação. Carregou sobre as próprias costas o peso das contradições históricas, embora fosse o inocente por excelência. Ao assumir o mal, carregando sobre si suas conseqüências, ele o reconciliou, superando-o a partir de dentro, sanando suas feridas e restaurando-o a partir de suas mais profundas raízes. Esta reconciliação que logrou realizar foi, de fato, autêntica por ter ele alcançado, mediante um único gesto, a intimidade mais profunda da pessoa humana, os mais lúgubres e contraditórios instantes da história e ainda os ângulos e os espaços mais recônditos do cosmos. Jesus operou, portanto, uma autêntica reconciliação mediante: a recriação da pessoa humana dilacerada pela experiência do pecado, a transformação da história gravemente marcada por toda sorte de contradição e a transfiguração do universo inteiro reintegrando-o a partir de suas fibras mais íntimas.
[1] A. Prado, "Festa do corpo de Deus", ID., Poesia reunida, Ed. Siciliano, São Paulo 1999, 281.
* Sinivaldo S. Tavares, OFM é Doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Foi professor no Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia na FAJE e no ISTA, Belo Horizonte.
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