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Sair da proteção da intimidade materna não era tarefa fácil, nem isenta de riscos.
Morri para a vida intrauterina, e nasci para o mundo novo que se abria para mim.
Por Evaldo D´Assumpção*
Manhã ensolarada, sol ainda despertando sonolento na praia deserta. Sentado e contemplando o céu infinito, as ondas rolando pela areia, veio-me um pensamento: as ondas são muitas e totalmente diversas, contudo, o mar é um só. Parece algo insignificante, todavia despertou-me para uma realidade fundamental: minha vida é uma só, contudo as mortes que vivencio, são inúmeras. E diante dessa constatação, perguntei-me: por que tanto se teme a morte, a ponto de nem mesmo nos sentirmos confortáveis falando sobre ela?
Comecei então a refletir sobre as mortes que já vivi, assim como todos os humanos com quem interagi, tanto quanto os que jamais conheci. Enfim, a humanidade da qual faço parte. Nesse mergulho metafísico, numa história já acumulada em quase oitenta anos, comecei por descobrir que minha vida teve origem no pensamento do Criador. Não no Cronos que nos regula, mas no Kairós, tempo de Deus, infinitamente além da nossa compreensão. Tomei tento de que muito antes de assumirmos forma no espaço-tempo em que nos encontramos, já havíamos sido gerados no pensamento criador de Deus para surgirmos num dia, numa hora e num segundo de Cronos, num local deste planeta, como parte de inefável projeto. Assim, por indefinível e planejado encontro de um determinado espermatozoide, com um óvulo específico, tomei consistência, iniciando a primeira etapa de minha vida como humano, no ventre materno.
Nove meses se passaram, num instigante processo de multiplicação celular ordenada, onde a segurança era relativa, pois já inserido no universo humano, estava sujeito às influências do meio ambiente, onde milhares de variantes atuam sobre as frágeis criaturinhas, que a partir de duas células multiplicando-se numa velocidade alucinante, vão se transformando em duas, quatro, oito, e milhares de outras células, cada uma assumindo, com suas características próprias e seus variegados potenciais, novas funções, novas atividades, novas formas. A cada onda de criações e mudanças, a morte (apoptose) ia acontecendo naquele pequenino ser, propiciando a organogênese e o aflorar da vida com novas formas e potencialidades. E foi assim que depois de milhares de mortes e nascimentos, atingi a forma e o potencial limites para aquela vida restrita ao espaço da cavidade intrauterina, que se tornou incapaz de suportar a amplitude inexorável da nova criatura que surgia.
Nova morte ocorreu então, essa mais radical que as anteriores. Chegou o tempo de deixar a plácida vida intrauterina, onde poderosos e sofisticados mecanismos protetores blindaram razoavelmente aquele novo ser, até que conquistasse seus mecanismos próprios para sobrevivência no mundo exterior. Este, bem mais amplo e promissor, contudo repleto de armadilhas capazes de impedir o desenvolvimento esperado para a nova criatura.
Sair do conforto e proteção da intimidade materna não era tarefa fácil, nem isenta de riscos. Entretanto, absolutamente indispensável, devendo acontecer por vias totalmente naturais ou induzida e acelerada por recursos tecnológicos. Felizmente minha jornada para uma nova vida aconteceu naturalmente. Morri para a vida intrauterina, e nasci para o mundo novo que se abria para mim. Uma vez mais a morte envolveu-me com seu manto, mas logo a vida acolheu-me em seus braços, resgatando-me para prosseguir a caminhada que se abria diante de mim.
Seguiram-se os tempos de bebê, células e tecidos se formando e substituindo aqueles que haviam completado seu ciclo e seu papel. Milhares de células morreram, outras tantas surgiram, sempre sustentando a mesma vida. Tudo num fluxo permanente, quase imperceptível. Vieram os primeiros passos, as primeiras palavras, frutos de mudanças estruturais e de conexões celulares acontecendo, silenciosas, num organismo que simultaneamente experienciava mortes, enquanto a vida se mantinha, única. Morreu o bebê, cedendo lugar à criança, que por sua vez também morreu e cedeu lugar ao adolescente; e este, ao jovem, ao adulto, ao idoso. Tudo num processo de mortes sucessivas, mas vida incessante, facilmente detectável nas fotos que iam gravando a evolução física, assim como nos trabalhos intelectuais, a cada dia mais complexos, mais amadurecidos. E, não menos importante, a enorme variedade de atividades, derrotas e conquistas, alcançadas na labuta do dia a dia; os sentimentos experimentados, as emoções, as tristezas e o júbilo se alternando, os relacionamentos afetivos, uniões e separações.
Quantas mortes ocorridas até agora? Impossível precisar. Mas a vida prossegue, única, indelevelmente cadastrada pelo DNA original. E a história prosseguirá, mortes ocorrendo em variegadas formas, mais ou menos amplas, mais ou menos perceptíveis. Até quando, não sei. Todavia, haverá um instante em que Chronos, até então triunfante, será penetrado por derradeira vez pelo indefectível Kairós, e a morte tomará a forma que a muitos apavora, pela sua irreversibilidade, mas que é parte imutável da natureza humana. Deixaremos definitivamente o espaço tempo regido pelo implacável Chronos, para entrar na eternidade, onde inexiste o seu poder. Mas a vida, ah! a vida que é única assim continuará, pois não fomos criados para o niilismo, mas para o tudo e para o não tempo. A vida triunfará sobre a morte, pois ela deixará de existir, enquanto a vida persistirá para todo o sempre.
*Evaldo D´Assumpção é médico e escritor
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