sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O Renato que me faz rezar

domtotal.com
Contudo, não há práxis sem a contemplação.
Renato Russo em show no parque Antártica.
Renato Russo em show no parque Antártica.

Por Pedro Lima Junior*

Estreio hoje como articulista do site Dom Total, na coluna “Ponto de Vista”, no editorial sobre religião, convite que aceitei com temor, porque sei que estarei do lado de grandes nomes, mas igualmente feliz pela confiança em mim depositada.

Esta semana o Brasil faz memória dos 20 anos da morte do cantor, compositor e poeta, Renato Russo, falecido em 11 de outubro de 1996, vítima de complicações por conta do vírus do HIV. O líder e vocalista da banda Legião Urbana transformou o cenário do rock nacional, juntamente com Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos. Suas músicas falavam sobre política, juventude, sexo, amor, problemas sociais, sentido da vida, sofrimento, relações humanas, etc. De uma forma ou de outra, as músicas de Renato suscitavam muitos sentimentos, como a indignação, a esperança, a desolação, o afeto, a ternura. Com uma boa dose ironia, um tanto de rebeldia e muita poesia, Renato conseguia passar sua mensagem, revelando as utopias encobertas dos filhos da revolução; dando nome aos nossos sentimentos patéticos e nobres; inflamando desejos de liberdade, ainda que esses fossem simplesmente sair pelo mundo fazendo um mochilão. Ouvir Renato Russo requer também maturidade. Uma letra que dizia muito na adolescência, não necessariamente vai ter o mesmo efeito na juventude ou na fase adulta. Por outro lado, passa-se despercebida aquela canção que, tempos depois, já adulto, e cheio de responsabilidades, fará todo o sentido. Ah, “somos tão jovens!”. No meu caso, posso dizer que, a priori – e não exclusivamente – as canções de Renato Russo e da Legião Urbana me faziam, e ainda fazem, rezar.

O rezar aqui não está ligado ao sentido tradicional, sinônimo de ladainhas e repetições automáticas, ou nos comportamentos em ritos e liturgias cheios de “senta-ajoelha-levanta”, realizados muitas vezes sem o movimento interno para o sagrado. Talvez as palavras corretas a serem usadas seriam contemplar, orar, meditar ou autoconhecer-se, mas, como rezar é uma ação comum no universo religioso, e muitas vezes vista com preconceito por religiosos e crentes que se acham mais religiosos e crentes que os demais; propositadamente faço uso do verbo rezar, recordando a reza popular que busca não somente recitar em voz alta, mas suplicar, encontrar e conversar com Deus através de um artifício, seja este um terço, uma novena, um livro de orações ou uma música. No meu caso, as músicas “profanas” de Renato Russo se tornam, a partir da experiência, músicas sagradas, pois, como bem salienta o jesuíta Benjamim González Buelta, “Não existe nada de profano para aquele que sabe ver” – e neste caso, ouvir. Segundo o jesuíta, trata-se da mística dos olhos abertos, e acrescento: dos ouvidos e demais sentidos abertos, onde Deus se faz presente em tudo, até naquilo que aparentemente pensamos não estar.

Minha primeira experiência com as músicas de Renato Russo e da Legião Urbana foi aos 13 anos. Na época estava na moda as festas americanas, o “Hi-Fi”, como dizia a galera do Estadual, escola pública de Muriaé-MG, onde passei toda a minha adolescência. Foi justamente numa dessas festas ingênuas de pré-adolescentes – depois substituídas por festas mais agitadas e nada formais – que ouvi pela primeira vez Renato Russo na música “Vento no Litoral”. Fiquei encantado com a letra e a melodia que me fazia querer ir descansar à tarde, à beira do mar e ver cavalos marinhos; de sofrer por um amor isento de sofrimento – se é que aquilo era amor. Era sim! Não vou cair no erro de julgar o passado com os olhos distraídos e impacientes de hoje. “Não foi tempo perdido!”.

Depois daquele dia, a Legião Urbana e Renato Russo passaram a fazer parte da minha vida. Aos poucos percebia que o “que eu mais queria era provar pra todo mundo que eu não precisava provar nada pra ninguém”, sem com isso me tornar um ser isolado do mundo, mas, pelo contrário, clamando o Amor “como se não houvesse o amanhã”, num sentimento estranho, parecido com saudade do que foi e “de tudo que eu ainda não vi”.

“Índios” me fizeram questionar como que o grupo de jovens que eu participava se tornara reduto de pregações moralistas e de músicas do Pe. Marcelo Rossi, que nos convidava a pular feito animaizinhos de dois em dois. Pular? Só se fosse nas músicas do LP DOIS, da Legião, e sozinho e no quarto e esbravejando pela janela: “quem me dera ao menos uma vez, entender como um só Deus ao mesmo é três, e esse mesmo Deus foi morto por vocês. É só maldade, então, deixar um Deus tão triste”.

Se o tédio era bem grande, a reza se transfiguraria em práxis – na pregação e na ação. Quando a “geração coca-cola” perguntava “que país é esse? ”, mandando os caras pintadas “pra Brasília com o diabo ter”, alguns anos depois, eu passava pela dialética da “Perfeição” – título de uma das músicas mais lindas de Renato – enumerando as feridas históricas e desmascarando as mazelas sociais: “o meu país com sua corja de assassinos, covardes, estupradores e ladrões [...] polícia e televisão [...] e nosso Estado que não é nação. ”.

Contudo, não há práxis sem a contemplação. Era preciso ser um contemplativo na ação, renovando a esperança e o olhar sereno, num julgamento assertivo para as coisas, onde o “amor tem sempre a porta aberta e vem chegando a primavera”, não obstante a todos os absurdos. “Pois em parte conhecemos e em parte profetizamos; quando, porém, vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá”. (1 Cor 13. 9,10). Pais e filhos, depois de um tempo, rirão um do outro quando se perceberem crianças e descobrirem que a culpa não é de ninguém. Então, “brigar pra quê, se é sem querer?”. Deixei o sol que batia na janela do meu quarto entrar e me espantei com a claridade que me invadiu. Não me escandalizei quando percebi que fui um “lobisomem juvenil”. De fato, era necessário ser “bicho do mato” no meio de homo sapiens tão iguais. No “Monte Castelo”, saberemos todos que “é só amor, é só amor que conhece o que é Verdade”. “E quando tudo está perdido, sempre existe um caminho, sempre existe uma luz”, mesmo que você não queira que te digam isso.

Renato não quis que dissessem que existia um caminho para aquele sofrimento. Livremente ele escolhera outro. “Ele quis chegar ao fim. Não se suicidou, mas simplesmente não lutou”, comenta Carminha Manfredini, mãe do artista. E quando tinha 36 anos, confirmando que “os bons morrem antes” e ironizando o título de “Ainda é cedo”, uma canção de muito sucesso, Renato partiu, mas deixou seu maior legado: uma legião de fãs que buscam ainda em suas músicas um momento de consolo, de distração, de significado e de contestação. E a novas gerações que passam a conhecer Renato e sua Legião Urbana não o deixa no ostracismo. Não há indícios de que ele pertencia a uma religião. E isso pouco importa. Dizer que rezo melhor com músicas do Renato Russo e outras da MPB, não necessariamente desmerece as canções cristãs, ao contrário, me faz enxergar que Deus está presente em tudo o que existe e, às vezes, Ele se faz transparente e o descobrimos na profundidade de situações e pessoas.

Um exemplo simples de como Renato Russo e outros artistas gigantes jamais morrerão é que o primeiro presente que meu filho recebeu quando veio ao mundo, ainda no hospital, foi o CD “As quatro estações” do amigo Gilmar Pereira, não por acaso colunista deste site que você visita. No caminho do hospital até a casa dos avós, meu filho recém-nascido, minha esposa e eu fomos ouvindo e confirmando uma verdade genuinamente religiosa: que há tempos “disciplina é liberdade. Compaixão é fortaleza. Ter bondade é ter coragem”.

*Pedro Lima Junior é pai do Pi e esposo da Si. É historiador, cientista da religião, professor, inaciano, atleticano e gosta de escrever informalmente no blog http://pedrolimajr.tumblr.com/. Colabora agora no site Dom Total.

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