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As fronteiras que separam as religiões não são fechadas e por suas porosidades uma interage com a outra.
Há uma religiosidade popular sincrética que caminha, lado a lado,
com a religião institucional. (Mateus Pereira/GOVBA)
Por Roberto Francisco de Oliveira*
O Sincretismo religioso é considerado um fenômeno da Sociologia das Religiões amplamente estudado pela academia. Trata-se de uma temática assaz controversa porque os acadêmicos não chegaram a um consenso sobre o que constitui, de fato, o conceito. A base comum sobre a qual todos os estudiosos se assentam é que uma determinada expressão religiosa entra em contato com outra e, desse entrecruzamento, dá-se uma comunicação ou transmissão de elementos de uma religiosidade para outra.
Na historiografia do termo, pensou-se primeiramente num paradigma que estabelecia uma religião “pobre” de elementos que buscava e se apoiava noutra “rica” de elementos. A primeira procurava preencher suas lacunas adotando aspectos da segunda.
Um exemplo desse modelo conceitual seria a Umbanda brasileira. Carente de um sólido corpo doutrinário, sincretizou-se com o Catolicismo português, Espiritismo europeu e Candomblecismo africano, absorvendo um pouco de cada e, a partir de uma reelaboração desse material, estabeleceu uma estrutura religiosa, notadamente amalgamada. Sob este aspecto, o Sincretismo reforça a ideia de arcaísmo, de plágio, de subdesenvolvimento cultural. Religiões fracas copiam as mais fortes e delas se alimentam.
Enquanto conceito, esta formulação vem sendo contestada pelos teóricos das religiões. Para além de pensarmos genericamente em uma religião que absorve e outra que é absorvida, devemos considerar uma troca de dados provocada pelo contato cultural. O esquema “uma dá e outra recebe”, já não mais se sustenta nos círculos de estudo. Todo contato supõe troca de componentes culturais, simplesmente porque toda cultura é porosa. Donde se vê que as fronteiras que separam as religiões não são fechadas e por suas porosidades uma interage com a outra.
Assim se deu no nosso Brasil, onde houve uma confluência de expressões religiosas. Foi o índio autóctone que travou contato com o cristão-católico português. Foram os negros escravizados de África que, como atores sociais, combinaram suas crenças e práticas com o catolicismo hegemônico e com a pajelança indígena.
Não se pode dizer que o menor pegou do maior. Ambos se tocaram; ambos se “contaminaram” do outro. E, embora, com o avançar dos séculos, cada religião no Brasil tenha erigido suas paredes fronteiriças, a prática popular que herdou a tolerância da miscigenação mantém-se até hoje, plástica e flexível. É o cristianismo católico que incorpora a si as benzedeiras com raminhos de arruda, alecrim e guiné. São as casas espíritas dedicadas a São Pedro e São Paulo, cujos médiuns incorporam padres e freiras. É o neopentecostalismo que, ludicamente, retiram “encostos” e “espíritos malévolos” de conversos vitimados.
Não há limites para a geografia do popular, não presa às amarras da institucionalização religiosa. Dessa forma, os terreiros de Umbanda evocam das divindades do Candomblé aos espíritos altruístas do Kardecismo. Os católicos piedosos se valem de manipulações de unguentos e rezas-forte para curar de quebranto, espinhela caída, mau-olhado.
Donde se vê que há uma religiosidade popular sincrética que caminha, lado a lado, com a religião institucional. Esta é aversa à mistura; aquela a promove. E entre os brados de protestos da religião oficial, que anseia a “descontaminação” e o seguimento exclusivo da “pureza” doutrinária, segue a religiosidade popular brasileira, frouxa a paradigmas e extremamente receptiva à combinação de crenças e práticas rituais. A porta da casa permanece aberta ao outro, ao estrangeiro, ao diferente, no âmbito do popular.
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*Roberto Francisco de Oliveira é doutor em Ciências da Religião pela PUC-Goiás e mestre em Teologia Dogmática pela Universidade Gregoriana de Roma. Pesquisa temas relacionados à religiosidade popular e à cultura afro-brasileira com ênfase nos processos da tradição africana dos povos bantu.
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