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Na Bíblia o Espírito Santo é um só e faz uma única ação: vence o caos para que a vida seja plenificada por ele mesmo.
O Espírito que agiu na criação é o mesmo que age no ser humano construindo uma sociedade na qual a vida se expresse em abundância. (Reprodução/ Pixabay)
Por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj
Os autores bíblicos não filosofaram sobre a natureza divina, mas se expressaram a respeito do Espírito Santo a partir da manifestação deste em experiências espirituais existenciais, nas ações históricas e na ordem da criação.
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A expressão “Espírito de Deus” ou “Espírito Santo” encontra-se na maioria dos livros da Bíblia. Mas, no Antigo Testamento (AT), a expressão hebraica Ruah ha-Kodesh, referindo-se unicamente ao Espírito Santo, somente é encontrada no Sl 51,13 e Is 63,10. Ruah significa “respiração”, “vento” ou “brisa” e ha-Kodesh significa “do Santo”, ou seja, “de Deus”. Na maioria das vezes, essa expressão é apenas um sinônimo de Deus ou da profecia por inspiração divina. Ruah ha-Kodesh também pode ser identificada com a Presença Divina na nuvem que guiava o povo no deserto e que pairava sobre a Tenda do Encontro (o Santuário) no acampamento israelita (Nm 9,15-17).
Embora, geralmente, o AT identifique o Espírito Santo com o Deus da aliança ou com uma ação específica deste, há também uma distinção, não muito clara, entre ambos. A identificação entre o Deus da aliança e o Espírito Santo é vista, principalmente, no Sl 139,7 (que declara a onipresença do Espírito), em Is 63,10 e em Ez 36,27. Em um grande número, porém, de passagens do AT, Deus e o Espírito Santo são distintos como, por exemplo, Gn 1,2; 6,3; Ne 9,20; Sl 51,13 e Sl 104,29s. Nestes últimos trechos do AT, o Espírito Santo aparece com funções que lhe são próprias.
Enquanto distinto do Deus da aliança, o Espírito Santo expressava a ação divina, particularmente quando inspirava uma ação humana caracterizada como efetivação de algum propósito de Deus. Então, o Espírito significava, principalmente, a ação de Deus imanente no ser humano e no mundo. O Espírito Santo era Deus agindo dentro do ser humano e, ao mesmo tempo, enviado por Deus ao ser humano.
Considerando-se a ação divina intramundana, os autores do AT entendiam que os fenômenos da natureza eram o resultado da ação direta de Deus através de seu Espírito. Para o AT, é pelo Espírito que a vida é dada, mantida e redimida.
Quando abordam sobre a ação do Espírito Santo na criação, os autores bíblicos a contemplam a partir do momento histórico em que vivem, ou seja, da desordem em que se encontram durante o exílio da Babilônia (587 a 538 a.C.). Aquela desorganização assustadora era a antítese da ordem que caracterizava a obra da criação. Por isso, o texto de Gn 1,2 destaca que o Espírito Santo estava conectado com o vazio e com as trevas, ou seja, com a terrível situação de caos antes de a palavra divina dar forma ordenada a todas as coisas. Ruah Elohim refere-se à poderosa presença de Deus movendo-se misteriosamente em forma de vento pairando sobre a superfície das águas, pronto para efetivar a ação de criar. Isso significa que o caos não representa limites sobre o que Deus pode fazer, mas representa o âmbito do poder indefinido, incontido e disforme; maleável nas mãos do Criador, mãos figuradas como vento pronto para ação.
O segundo texto sobre a criação contém o relato do jardim em Gn 2. A existência do jardim parece pressupor que, fora dele, as coisas são caóticas, como o era na Babilônia ou no Brasil atual. A expulsão de Adão e Eva do jardim sugere que fora dele as coisas não são tão hospitaleiras para a raça humana. Nesse sentido, os capítulos 1 e 2 de Gn estão afirmando que a criação é “muito boa” mas continua a ser aperfeiçoada, em parte pela ação humana sob inspiração do Espírito Santo. Nesse caso, a ação do Espírito na criação não está desvinculada de uma ação política ou ética do ser humano inspirado pelo mesmo Espírito que vence o caos. O Espírito na criação é o mesmo dos profetas que denunciam a injustiça, é o mesmo que está ungindo Jesus quando anuncia o Reino (Lc 4,18-19) e quando é retirado da morte para a ressurreição. É o mesmo que inspira a igreja sempre em sua busca por justiça. Por isso, o Sl 33, 6 afirma que “pela palavra do Senhor foram feitos os céus, o exército estrelado pelo sopro da sua boca”. Neste caso, a Palavra está em paralelo com Espírito, o Senhor realiza pela Palavra, o Senhor age pelo Espírito.
No Sl 104, 29b-30 se atribui ao Espírito uma função específica, como Senhor doador da vida. Isto está em consonância com Gn 2,7 quando se afirma que o Senhor soprou sobre o ser humano e este se tornou um ser vivo. O Espírito do Senhor dá a respiração que é a vida. Ezequiel faz do Espírito a fonte da vida plena e escatológica: “Vem dos quatro ventos, ó espírito, e sopra sobre estes mortos, para que vivam... Assim diz o SENHOR Deus: Eis que abrirei a vossa sepultura, e vos farei sair dela, ó meu povo” (Ez 37,9.12). O Espírito que agiu na criação é o mesmo que age no ser humano construindo uma sociedade na qual a vida se expresse em abundância. É o mesmo que vence o último vestígio do caos na vitória sobre a morte. Não apenas a vida, mas a vida da ressurreição é o dom do Espírito.
Portanto, o Espírito deve ser entendido como poder de Deus pelo qual ele sustenta a vida do mundo e a renova através palavra profética quando o caos se instala por causa da injustiça, culminando na ressurreição com a vitória sobre a última ameaça do caos que é a morte. Na ressurreição do ser humano, a criação inteira será definitivamente libertada do caos, não mais do caos inicial, mas daquele que é consequência do pecado humano “a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8,21). Então a obra do Espírito na criação estará completa.
Considerações finais
Na Bíblia o Espírito Santo é um só e faz uma única ação: vence o caos para que a vida seja plenificada por ele mesmo. Quando age na criação, no profeta, em Jesus anunciando o Reino por palavras e ações poderosas, e quando ressuscita Jesus, faz um pentecostes na Igreja, o Espírito Santo está fazendo sempre a mesma coisa. Vencendo o caos e plenificando a vida. Por isso, não se pode separar a ação do Espírito Santo na história, como se cada vez ele fizesse uma coisa diferente. Não. Apenas didaticamente podemos separar esses eventos, destacando um ou outro. Mas sempre conscientes que se trata da mesma ação.
*Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj é religiosa da Comunidade Nova Jerusalém, graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará, em Teologia pela FAJE, onde também obteve os títulos de mestre e doutora em Teologia.
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