sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Natal, festa da carne!

domtotal.com

Celebra-se no Natal a memória fundamental para a fé cristã de que se Deus se humanizou

Seguir a Jesus Cristo é estar associado à sua carne, isto é, à sua vida, existência
Seguir a Jesus Cristo é estar associado à sua carne, isto é, à sua vida, existência (Rob Hayman/ Unsplash)
Teófilo da Silva*
Não, aqui não há nenhuma confusão com o carnaval! A festa popular do carnaval não é, necessariamente, uma festa da carne: é festa da despedida dela. O natal não, esse sim é festa da carne, legitimamente: assunção! É a memória à qual somos chamados a viver de que nossa carne tem valor, afinal, o próprio Deus no qual fiam suas vidas os cristãos e cristãs, tomou parte nela, para viver uma vida inteiramente humana. Aqui, resgatar o semitismo carne é simbolicamente profundo quando, influenciados por um pensamento grego, acabamos por olhar com desprezo para o nosso corpo.
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Para o povo que gestou a Bíblia, dizer carne é dizer a existência humana, o humano mesmo. Ultrapassa, pois, a materialidade do corpo, para alcançar a corporeidade. O corpo é a expressão da subjetividade irrepetível, à qual chamamos alma. Para a mentalidade bíblica, pois, fazer a separação grega do corpo e da alma é minar o humano, pois não há existência que não esteja expressa num corpo. Daí a importância, por exemplo, de fé na ressurreição da carne: é só no corpo que a ressurreição poderia existir e é por isso que não se fala em ressurreição da alma. As duas festas mais importantes para o cristianismo, pois, têm a ver com a carne e apontam para uma dupla esperança: o natal é a festa em que se celebra o Deus que assume a carne, para nos salvar desde dentro do que somos; a ressurreição é a festa em que se celebra o Deus que transforma a carne, para uma vida divinizada e indestrutível.
Não há, pois, fé legitimamente cristã, sem carne, afinal, seguir a Jesus Cristo é estar associado à sua carne, isto é, à sua vida, existência. A festa do natal deve, pois, também nos inspirar ao comedimento da carne, da nossa carne. Se é a festa na qual celebramos a memória fundamental para a fé cristã de que se Deus se humanizou, ela tem uma dimensão pedagógica importante: nos ensinar a necessidade do cuidado que devemos dispensar a este corpo que expressa a minha subjetividade, o meu eu irrepetível. Cuidar de nossa carne é compreender que toda nossa vida merece cuidado e zelo; é compreender, também, que nosso corpo merece ser olhado com generosidade, pois ele não é a sede do pecado, como muitos pregam há tempos, dentro do próprio cristianismo. O corpo não tem desvãos, ensina-nos Adélia Prado. É por isso que ela insiste: à alma sim, a esta batizai, crismai, não ao corpo.
O natal, sobretudo quando o consumismo é uma das mais fortes vozes da falsa promessa de felicidade, é uma festa que nos chama ao comedimento. Agora, o natal já passou e, possivelmente, em nossas geladeiras ainda podemos encontrar seus vestígios. Na internet, muitos memes sobre o excesso da comilança que, muitos de nós, acabamos por nos identificar. E é bem possível que até tenhamos passado um pouco de mal e desconforto, pela quantidade desenfreada de comidas [e bebidas] que ingerimos. Celebrar o natal com fartura – o que é já um privilégio negado a muitos – não pode significar excesso. Fartura pode ser expressão de alegria e de convivialidade e é empobrecedor quando ela é identificada à quantidade, muitas vezes exagerada.
Celebrar o natal ao redor de uma mesa farta é uma maneira que encontramos – os que não somos impedidos, por força do empobrecimento injusto que desumaniza – de dar significado à celebração de um encontro: o de Deus conosco e, por isso, de nós mesmos entre os que amamos e estimamos. Que este feliz – e, em relação a muitos e muitas, um privilégio – encontro ao redor da mesa nos inspire à sabedoria de que podemos encontrar prazer no comedimento, mas também, e fundamentalmente, na solidariedade com aqueles e aquelas que não tem o mínimo necessário para refeições básicas. O réveillon está aí, às nossas portas: eis uma ótima oportunidade de aplicarmos o que aprendemos com a pedagogia do natal, esta festa da carne, que quer salvar nossa própria existência!
*Teófilo da Silva é teólogo e poeta

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