Até ontem, o Brasil era um país onde apenas biografias chapa-branca tinham vez. Felizmente isso mudou: prevaleceu o bom senso no Supremo Tribunal Federal, que por nove votos a zero aprovou o fim da mordaça, eliminando a exigência de autorização prévia de biografados ou herdeiros para o lançamento de livros ou obras audiovisuais. Triste é constatar que, do lado dos que sofreram a derrota acachapante, estão intelectuais e artistas que, por sua própria história de vida, deveriam se opor a qualquer forma de censura, como Chico Buarque e Caetano Veloso.
Não foi sem razão que o americano Jon Lee Anderson, autor de uma ambiciosa biografia de Che Guevara, declarou, em 2013, que nossa legislação nessa área aproximava o Brasil de países como Irã, Rússia, China, Cuba, Sudão, Zimbábue, Síria e Arábia Saudita. Porque, nas democracias avançadas, esse debate já foi superado há muito tempo. Nos Estados Unidos, França, Reino Unido e Espanha, não há qualquer restrição prévia à publicação de biografias não-autorizadas. Até em Portugal o Código Civil determina que, no caso de o personagem ser uma pessoa pública, não é necessária autorização.
Em todos esses países, naturalmente, caso o biografado se sinta prejudicado ou caluniado pela obra, pode recorrer à Justiça – mas sempre após o lançamento. E o autor deve estar preparado para arcar com as consequências, caso tenha ultrapassado as fronteiras da ética. Simples assim.
É falsa a oposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade, que não são direitos excludentes. A rigor, a qualificação “não-autorizada” significa apenas que a biografia foi escrita sem a aprovação ou parceria do biografado. Mas dificilmente uma biografia investigativa séria sobre personagens polêmicos contará com essa aprovação. É óbvio que qualquer pessoa pública com algo a esconder sempre se oporá a uma pesquisa séria sobre a sua vida.
Na França um caso exemplar foi o do ex-diretor do FMI, Dominique Strauss-Kahn, que pediu – sem sucesso – a interdição judicial do romance em que Marcela Iacub evocava o caso amoroso que tiveram. Já no Brasil o cantor Roberto Carlos conseguiu proibir a circulação da biografia escrita por Paulo Cesar Araújo, e a editora Planeta teve que recolher toda a tiragem das livrarias. Na política, outra figura pública que se posicionou contra a liberação das biografias não-autorizadas foi José Dirceu. Por que será?
Celebridades brasileiras gostam muito do bônus, mas abominam o ônus da fama. Mas é direito dos cidadãos ter acesso a informações obtidas de forma independente sobre aqueles que admiram, sustentam e elegem. Tem toda razão, portanto, o presidente da OAB, Marcus Vinícius Coelho, que assim se manifestou durante o julgamento no Supremo: "Quando somente a opinião oficial pode ser divulgada ou defendida e se privam dessa liberdade as opiniões discordantes ou minoritárias, enclausura-se a sociedade em uma redoma que retira oxigênio da democracia e por consequência aumenta-se o risco de ter um povo dirigido, escravo dos governantes e da mídia, uma massa de manobra sem liberdade”.
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