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Ela talvez seja a única capaz de religar os fios rompidos da complexa teia do nosso mundo.
A religião jamais poderá se sentir 'desobrigada' de debater acerca das questões do 'nosso tempo'.
Não estariam as religiões engolindo a isca que lhes é lançada pela atual civilização da Tecnociência, do Mercado e da Mídia? Sujeitar-se às condições que lhes são impostas, ainda que veladamente, de se circunscrever aos estreitos limites da mera funcionalidade não seria sacrificar justamente aquilo que as constitui, para todos os efeitos, como religião? Trata-se de uma questão crucial para o presente e o futuro das religiões em nossas sociedades. De fato, aquelas dimensões constitutivas das grandes tradições religiosas são postas em crise pelo paradigma da Tecnociência do Mercado e da Mídia.
Dimensão constitutiva de praticamente todas as tradições religiosas é sua peculiar concepção de tempo. Algumas tradições o concebem como cíclico; para outras ele é linear; para outras ainda, como é o caso da tradição bíblica, o tempo é escatológico. Há autores que insistem em interpretar o “nosso tempo” caracterizando-o mediante expressões fortes como, por exemplo, “fim da história” ou “crepúsculo do tempo”. Tratar-se-ia de conceber a contemporaneidade como fim ou crepúsculo da história concebida como tempo dotado de sentido. Nesse caso, nega-se por completo a história enquanto narrativa que se tece ao redor de sentidos - construídos, desconstruídos e reconstruídos - em torno a seus três referenciais constitutivos: passado, presente e futuro.
A Tecnociência propicia uma relação deveras peculiar para com o tempo. Somos, na verdade, sufocados pelo assim chamado “presentismo”, vale dizer, pela expansão do presente que abraça a totalidade do tempo mediante seus tentáculos ameaçadores. O passado se perde na insignificância do “ultrapassado”, enquanto o futuro se resolve no “previsto” mediante o “aperfeiçoamento” dos procedimentos tecnológicos. O único tempo reconhecido pelas novas tecnologias é aquele que separa seus produtos em 1ª, 2ª, 3ª, última geração. Ademais, testemunhamos um processo de aceleração crescente do tempo expresso na insistência em circunscrevê-lo ao âmbito da mera quantidade. Ouve-se, hoje, falar muito de desenvolvimento e em crescimento. Através de ambos os termos, o tempo parece esgotar-se na dimensão do quantitativo, mensurável, cronológico. Não se percebe nele algum traço de intensidade. Na idade da Tecnociência, encontramo-nos enredados nas malhas sedutoras do krónos: aquele tempo cujo ritmo é avassalador, pois vai arrastando sem piedade tudo o que encontra diante de si. As tecnologias consignam o tempo a seus resultados e nada mais.
Se, de fato, a tecnociência se tornou uma espécie de ambiência na qual o ser humano chega ao conhecimento de si e do mundo no qual vive, isso significa que é a partir desse horizonte de fundo que os seres humanos percebem, pensam e expressam suas relações básicas: consigo mesmo, com seus semelhantes, com o mundo em que vivem e conseqüentemente com tudo o que se situa na esfera do religioso. Nesse contexto emergem situações que caracterizaríamos como verdadeiros sintomas dessa nova ambiência promovida pela tecnociência. A cultura do narcisismo, por exemplo, onde a liberdade da auto-realização é confundida com a impossibilidade de sair do horizonte do eu. Outro exemplo poderia ser a situação de monólogo produzida pela linguagem mediática de hoje. Nessa nova configuração, a existência das pessoas tomadas singularmente só se justificaria com base na habilidade técnica e capacidade produtiva dessa mesma pessoa. Nesse caso, a identidade de uma pessoa se resolveria na sua funcionalidade. Em outros termos, seu valor residiria na própria competência e profissionalismo. E isso porque a tecnociência reconhece como valor supremo e inquestionável a eficiência.
A própria concepção de verdade se encontra, no “mundo da tecnologia”, condicionada pela noção de eficácia. A verdade da técnica é, para todos os efeitos, funcional. Verdadeiro é o que surte efeito em termos reais, isto é, funcionais. Não mais interessa a busca do conhecimento pelo conhecimento, mas sim do conhecimento utilizável. Trata-se da redução do logos à sua dimensão tecno-lógica (téchne + logos). Testemunha-se, portanto, a hegemonia da razão instrumental que, por sua vez, produz um processo duplo e simultâneo de desumanização da pessoa e de desnaturalização da natureza. Em seu exercício, opera-se a tradução dos fins em resultados, o primado do “ser-assim” sobre o “dever-ser”; a redução do desconhecido a incógnita matemática e, enfim, a submissão da novidade à ordem da previsão.
Por essa razão a palavra-chave para exprimir o que se compreende hoje por conhecimento é Know how (conhecer/saber como), portanto, um conhecimento aplicável, um saber-como fazer, um saber que se esgota no instrumental. Não apenas um saber apto a produzir receitas, moldes de leitura e instrumentos para intervir na realidade. A situação é ainda mais grave, descobrimo-nos reféns de um saber que se concebe a si próprio como instrumento. É claro que um saber assim concebido alcança as questões que vão além da utilidade e da aplicabilidade. Esse saber se revela, para todos os efeitos, vítima de uma indigência. Ele não consegue problematizar em profundidade as questões que constituem o horizonte de fundo do cenário atual.
Se, de fato, nossa tese é pertinente, faz-se necessário instaurar um processo de discernimento da religião enquanto tal. Pressuposta sua condição de mediadora, inscrita em sua própria constituição etimológica (re+ligare), a religião jamais poderá se sentir “desobrigada” de participar do amplo debate acerca das questões cruciais do “nosso tempo”: a dignidade inalienável do ser humano, a justiça, a participação e a inclusão sociais e, enfim, o destino da vida em nosso planeta.
E isso porque a religião talvez seja a única capaz de religar, como exprime a própria etimologia da palavra, os fios rompidos dessa complexa teia do nosso mundo. Nesse sentido, o universo religioso se constitui em espaço privilegiado para se furtar a essa onipotência esmagadora das novas tecnologias, do mercado e da mídia, desmascarando seus tentáculos opressores e seus interesses escusos. Se a incumbência da religião é reconstruir a partir das ruínas, a de coser de novo a partir das dilacerações e fragmentações, então como fazê-lo senão procurando resgatar sua dimensão intrinsecamente religiosa?
Nesse sentido, estamos convencidos de que as religiões têm diante de si uma incumbência singular: repensar o risco e a importância dessa dimensão ambígua e paradoxal do ser humano que se reflete na esfera do religioso. E para que tal incumbência seja levada a cabo é fundamental que as religiões assumam o perfil que as faz ser o que elas, de fato, são chamadas a ser: a instância de discernimento da religião.
*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia.
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